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Logo depois de acordar de uma cirurgia, Elgar pede papel e caneta.

O compositor tem uma ideia para escrever, e parece que tinha de ser rápido, não vá ela fugir.

E é assim que, depois de escrevinhar algumas notas num guardanapo, sai o tema principal do seu Concerto para Violoncelo, que viria a tornar-se uma das suas peças mais famosas.

Elgar estava não só num estado mental melancólico, mas também traumatizado. Os eventos da Primeira Guerra Mundial tinham destruído grande parte do Mundo como ele o conhecia e adorava. Tomado pela dita melancolia no final da sua vida, considerava esta melodia como sendo a sua própria melodia, chegando a assobiá-la ao seu amigo violinista William Reed no seu leito de morte e dizendo-lhe com lágrimas nos olhos:

“Após a minha morte, se escutares alguém a assobiar esta melodia pelo Malvern, não te assustes. Sou só eu.

Apesar de a peça começar com algo que parece uma nostálgica melodia típica pastoral inglesa, a melodia, quando tocada na corda de lá do violoncelo, adquire uma expressividade que mais se assemelha a um lamento, que depois se transforma numa escala que vai até ao limite do registo do instrumento para criar clímax. É quase impossível tocar notas tão agudas com afinação perfeita no violoncelo, o que demonstra uma certa vulnerabilidade no próprio instrumento.

Outro efeito usado na peça é o efeito de “suspirar”, em que uma nota apenas “cai” para a sua nota vizinha, reiterando a tristeza e o pesar evidenciados nesta peça.

Adotando uma não habitual estrutura de 4 movimentos, lento, rápido, lento e a passar de rápido para lento, Elgar sabia que concertos servem para o solista mostrar as suas habilidades virtuosas. Não podia ser tudo lento, ou nenhum solista o quereria tocar.

Portanto, Elgar criou um segundo movimento rápido e energético, que é como que um conjunto de reminiscências do Mundo que ele conhecia e no qual ele era feliz, ao qual atribuiu um tom etéreo, e que abranda subitamente algumas vezes ao longo da peça, como se o solista tivesse sido acordado das suas fantasias e enfrentasse novamente a triste realidade. Elgar teve ainda o cuidado de manter este movimento frágil e delicado para intensificar a emoção geral que ele transmite.

No terceiro movimento, o efeito de “suspirar” torna-se quase na totalidade da peça, e a constante aplicação desta técnica transforma esta peça numa espécie de “ciclo de pesar”, e este efeito já chegou a ser chamado de “página mais comovente da literatura do violoncelo”.

Voltemos à breve descrição do primeiro movimento que eu fiz, e agora explicá-la-ei num contexto histórico.

O compositor não era apenas Edward Elgar. Era Sir Edward Elgar.

A sua aparência pública era de um homem intelectual e tipicamente britânico, um pilar da música inglesa, inteligente, nacionalista, tradicional.

Produzia música pomposa e extravagante, o que podemos notar nas suas famosas Marchas de Pompa e Circunstância, deste período, e era responsável pela música do rei.

Isto tornava-o conhecido como uma figura muito patriótica, muito típica da Grã-Bretanha.

Mas depois, ao mesmo tempo da Guerra Mundial, veio o jazz, o modernismo, os direitos das mulheres… já ninguém queria saber de um patriota pomposo. Acho que podemos dizer que Elgar, sendo tradicional como era, ficou “fora de moda”.

Duke Ellington – pianista, líder de orquestra e compositor de jazz

Claude Debussy, considerado juntamente com compositores como Strauss, Schoenberg e Mahler uma figura do modernismo na música
Emmeline Pankhurst, importante ativista pelos direitos das mulheres

Para além disso, como creio já ter referido anteriormente, a guerra destruiu o Mundo em que Elgar tinha nascido e sido feliz. Os seus efeitos fizeram com que Elgar tivesse de viver num Mundo totalmente novo e destruído pela tragédia, que pura e simplesmente não conhecia.

O compositor apenas queria o seu mundo em paz e felicidade de volta.

É nesta tristeza de ver a sua obra negligenciada e o mundo em que vivia destruído que Elgar escreve este concerto, pouco antes de falecer. E, apesar de toda a expressividade que nele incorporou, não chegava.

O concerto foi, também, negligenciado.

Uma peça pesarosa escrita por um compositor de um tempo ultrapassado pura e simplesmente não era o que a época precisava. Demoraria ainda tempo até o compositor conseguir recuperar alguma coisa em termos de relevância na música britânica.

Assim, o concerto caiu na penumbra até aos anos sessenta.

Mas, às vezes, como no caso de Joseph Joachim com o concerto para violino de Beethoven, uma obra só precisa do solista certo para brilhar.

E, neste caso, a salvadora do concerto foi Jacqueline du Pré.



Daniel Barenboim, seu marido quando ela era viva, diz dela:

“Ela era uma música única. Ela não era exatamente muito versada sobre coisas relacionadas à música de uma forma musicológica ou científica, mas ela tinha um instinto estranho e uma rapidez de cérebro incompreensível. Ela via uma peça pela primeira vez e era capaz de não apenas tocar as notas, mas chegar à essência dela. ”
Jacqueline du Pré e Daniel Barenboim

Foi apenas com 20 anos que ela gravou este concerto pela primeira vez, e tornou-se uma sensação imediata. A sua maravilhosa interpretação mudou completamente a visão deste concerto e desde então que todas as novas versões deste concerto são comparadas à dela.

Desde a visibilidade que esta marcante interpretação trouxe à peça, os mais famosos violoncelistas de renome internacional decidiram explorá-la. Alguns exemplos são Pablo Casals, Mstislav Rostropovich, Julian Lloyd Weber, Yo-Yo Ma, Sol Gabetta, entre outros. Portanto… foi mesmo bom.

Mas o que adiciona densidade a esta história é a bem conhecida história do que aconteceu a seguir.

“Ela fez uma operação muito simples e pequena, totalmente sem nenhuma dificuldade, mas para a qual ela teve uma anestesia geral e, quando acordou, não sentiu nenhuma sensação em certas partes do corpo”, continua Barenboim.

Logo, ela tornou-se incapaz de julgar o peso do seu arco e, quando foi diagnosticada com esclerose múltipla em 1973, ela tinha desistido completamente de se apresentar em público.

Ela acabaria por morrer com apenas 42 anos.

Assim, tanto o seu sucesso como a sua tragédia são sempre associados a este concerto, e não só a sua interpretação mas também a sua história adicionaram uma nova camada de emoção à peça.

Até hoje, esta violoncelista é conhecida como uma das maiores intérpretes do instrumento, e este concerto como dos mais importantes no repertório do instrumento.

Eu adoro o sentimento físico de estar na terra que me suporta. Eu tenho a mesma emoção quando entro num sítio muito bonito que tenho quando eu toco e sai bem.

Jacqueline du Pré
Violoncelista
A minha ideia é que há música no ar, música à volta de todos nós, o Mundo está cheio de música e nós simplesmente levamos a quantidade que requeremos.

Sir Edward Elgar
Compositor

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Maria Manuel Costa
Maria Manuel Costa
28 de Janeiro, 2022 21:49

Realmente comovente, a história que entrelaça as vidas de Elgar e Jacqueline. Ou de como um compositor não é completo sem o intérprete certo… e vice versa. Muito bom, o artigo. Bravo!

Mariana
Mariana
Resposta a  Maria Manuel Costa
28 de Janeiro, 2022 21:56

É verdade… às vezes só é preciso o intérprete certo para fazer uma peça brilhar!
Penso que foi Schoenberg que se irritava constantemente porque os intérpretes das suas peças, sem o recurso ao sistema tonal temperado, não sabiam tocar as suas peças com a expressividade que ele queria.
Ainda bem que Jacqueline salvou esta peça do abandono e lhe trouxe a expressividade e interpretação de que ela precisava… senão, uma obra-prima era esquecida!
Muito obrigada pelo comentário ❤

Mariana

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