Primeira parte deste artigo (A Evolução da Ópera) aqui.
Estas duas obras não são exatamente parecidas. Se fosse preciso encontrar semelhanças, talvez o mais fácil fosse mesmo dizer que… as duas têm intervalos entre as diferentes partes, ou algo do género.
Mas a verdade é que estes dois géneros têm um antepassado comum: a nossa querida Ópera.
O tema de hoje vai ser como é que estes dois géneros evoluíram a partir da Ópera (no caso do musical, as diferenças fundamentais entre o musical e a ópera também).
Comecemos então pelo musical.
Musical
Num livro incrível que já devo ter mencionado umas cinquenta mil vezes no blog (“A Alegria da música” de Leonard Bernstein), num dos capítulos das conversas imaginárias, há um produtor da Broadway que diz que a herança musical europeia recebida pela população residente na América veio num prato rachado e muito velho (isto não está exatamente à letra, mas… percebe-se a ideia).
E foi a partir deste prato rachado e muito velho que surgiu toda a música que é hoje associada à América – blues, jazz, stomp, American folk, big band, boogie woogie, jive, swing, Broadway, etc.
Foi também aqui que surgiu música que pode ser associada a certos compositores e é considerada derivada da música clássica, como o clássico-moderno de George Gershwin ou as marchas do século XIX de John Philip Sousa.
Mas o musical, tal como a ópera, acaba por descender de uma tradição muito mais antiga – a tragédia grega (falo mais sobre a tragédia grega na primeira parte sobre a evolução da Ópera).
Depois de estas formas evoluírem, bases mais consistentes para o musical começariam com as épocas elisabetana e jacobiana na Inglaterra, e que continuariam durante o período de Tudor, culminando em peças cantadas que podem ser consideradas como fazendo parte do repertório operático inglês, pensando-se que a primeira destas peças foi a “The Siege of Rhodes” (que foi escrita por cinco compositores! – Henry Lawes, Matthew Locke, Henry Cooke, Charles Coleman e George Hudson).
Este estilo influenciaria a ópera inglesa do séc. 17 e, particularmente, óperas de compositores como John Blow e Henry Purcell.
A partir do séc. 18, o estilo que dominou foi a ópera balada, que vai ser fulcral para o musical, especialmente The Beggar’s Opera, escrita por John Gay.
A ópera balada incluía letras escritas ao som de canções populares da época (muitas vezes a imitar ópera), e seria seguida por outros estilos como a pantomina, o singspiel, a comédie en vaudeville, a zarzuela, a burletta, entre outros.
No entanto, seria a ópera balada que traria importância à música apresentada na América colonial, e tudo começaria com o empresário William Hallam, que enviaria uma companhia de atores para as colónias americanas controladas pelo seu irmão, o ator e diretor de teatro Lewis Hallam.
Em Nova York, no verão de 1753, foram representadas por esta companhia variadas peças dentro do estilo da ópera balada e da balada farsa.
Alguns dos estilos que se seguiram à ópera balada em Inglaterra seguiram-se também na América Colonial, como a pantomina e a burletta.
Inglaterra e América continuaram a progredir em termos de estilo até à data do aparecimento de uma curiosa peça que satisfaria pela primeira vez a definição de musical: The Black Crook.
Enquanto antigamente as produções deste género em Nova York duravam, no máximo, duas ou três semanas, desta vez The Black Crook estaria nos palcos da Grande Maçã por mais de um ano.
Foi então esta peça que abriu caminho para a comédia musical americana florescer. Inaugurada em 12 de setembro de 1866 em Niblo’s Garden, Broadway, em Nova York, obteve, no total, a bastante surpreendente quantia de 474 performances.
Teve ainda direito a uma digressão extensiva durante décadas e décadas e reviveu na Broadway nas temporadas de 1870-71, 1871-72, e muitas outras.
Concedendo à América a reivindicação da invenção do musical, The Black Crook é considerado um protótipo do moderno musical, devido ao facto de as suas canções e danças populares serem intercaladas por um papel unificador interpretado pelos atores.
Depois da estreia deste musical predominou um estilo aparecido ainda antes de The Black Crook, a opereta, explorada principalmente por compositores como Offenbach e Strauss e inicialmente criada pelo compositor francês Hervé (cujo verdadeiro nome não era Hervé, mas sim Louis-Auguste Florimond Ronger, mas com um nome tão pouco apelativo até se percebe o uso do pseudónimo).
https://youtu.be/TlZevqYa2jc
O século vinte traria ao musical nomes fulcrais no seu repertório, como George e Ira Gershwin, Cole Porter, Rodgers and Hart, Irving Berlin, entre outros – e traria também atores famosos como, por exemplo, Fred Astaire, considerado o melhor dançarino da história gravada.
Of Thee I Sing, uma sátira dos Gershwins, seria o primeiro musical a receber um prémio Pulitzer, e na era dourada surgiriam novos nomes como Rodgers and Hammerstein e Kurt Weill.
Seguidamente surgiriam musicais conhecidíssimos como West Side Story (Bernstein/Sondheim) e The Sound of Music (Rodgers & Hammerstein), que viriam a dar lugar aos musicais rock (1970), como Jesus Christ Superstar e Godspell.
Na década seguinte surgiriam os megamusicais, e com eles um dos maiores nomes na história do musical, Andrew Lloyd Weber, e um dos musicais mais importantes da década que ainda hoje permanece reconhecido e apreciado: Les Misérables.
Desde o início do século XXI que têm surgido musicais tanto mais afastados das formas tradicionais, tanto baseados em histórias já escritas (como por exemplo os da Disney, que já perduravam desde o século passado), como por exemplo Hamilton, Billy Elliot, Shrek e a Pequena Sereia.
O último ponto em que gostaria de incidir no que diz respeito ao musical seria nas suas comparações à ópera – sumariamente, seria mais ou menos isto:
- Enquanto pode haver exceções tanto na ópera como no musical, o musical foca-se mais no diálogo falado do que a ópera (apesar de podermos argumentar que isto não se verifica em óperas como, por exemplo, Die Zauberflöte, e que nas óperas de Wagner o compositor tentou criar uma técnica que fosse uma espécie de mistura entre canto e diálogo falado, de que falo em mais pormenor na parte 1 do artigo)
- Musicais normalmente incluem mais dança como elemento fulcral para a transmissão da história do que a ópera, que normalmente se foca mais na vertente da atuação do que na dança
- O musical normalmente é mais reconhecido por usar canções, estilos musicais ou técnicas vocais que remetem para música popular
- A ópera pode não ser escrita na língua da sua audiência, mas tal não se verifica no musical. Se for um musical na Inglaterra é escrito em inglês. Se for um musical na Indonésia é escrito em indonésio. Se for na Noruega é em norueguês. E por aí fora.
- Por último mas não menos importante, é geralmente aceitável que se usem microfones e outros métodos de amplificação nos musicais, mas se fizessem isto na ópera era mais ou menos um sacrilégio, talvez porque enquanto no musical é importante ser-se bom em canto, dança e representação, na ópera é importante ser-se, primariamente, bom cantor, e só secundariamente bom ator.
Dou agora por concluído o musical e passo à segunda e última forma de que vou falar neste artigo: a Sinfonia.
Sinfonia
Na parte 1 deste artigo já mencionei um compositor extremamente importante para a criação da sinfonia, o italiano Alessandro Scarlatti – cujas inovações operísticas foram numerosas e deveras relevantes para o desenvolvimento deste estilo.
Ora este compositor decidiu denominar as suas aberturas de “sinfonias”, vá-se lá saber porquê, mas o que é certo é que foi a partir destas aberturas operísticas que surgiu a Sinfonia que tão bem conhecemos hoje.
Levemos por exemplo a abertura da ópera de Alessandro Scarlatti “La Griselda”:
A estrutura desta abertura foi crucial para a criação de formas como a sinfonia, a sonata e o concerto – uma estrutura de três movimentos, rápido-lento-rápido.
Este tipo de aberturas de ópera, agora conhecidos apenas como Aberturas Italianas para não serem confundidos com a sinfonia, tornou-se extremamente popular na altura – as pessoas adoravam particularmente estes inícios de ópera, e os compositores, ao repararem nisto, decidiram começar a compor estas aberturas como peças por si só, desprovidas de todos os atos que se seguiriam.
Foi assim que as pessoas começaram a ouvir sinfonias, ou seja, aberturas de ópera tocadas sozinhas.
E foi, também, assim que os compositores começaram a compor sinfonias – no entanto, ainda havia muito para desenvolver.
Johann Stamitz decidiu então pegar nesta abertura-italiana-sinfonia-arcaica e começar a desenvolvê-la, mas fê-lo de um modo um bocado indireto: decidiu escrever sonatas para orquestra, mas alterou a sua estrutura para quatro movimentos, o que se tornaria na estrutura definitiva da sinfonia que conhecemos hoje.
Essas “Sonatas para Orquestra” tornar-se-iam então as primeiras sinfonias, com os seus quatro movimentos e instrumentação característicos desta forma que hoje podemos encontrar ao longo de toda a história da música, desde Haydn a Bruckner.
Por falar em Haydn… é ele que vem a seguir!
Franz-Joseph Haydn (sobre o qual acabei de ver este vídeo que adorei) adorava a magnífica expressividade e contraste da orquestra sinfónica e a maneira como ela contrastava com as festas pomposas dos Esterházy, a família para a qual ele trabalhava como músico da corte.
Foi por isso que ele decidiu compor sonatas para a sua orquestra sinfónica, como Stamitz, só que desta vez decidiu chamar-lhe sinfonias.
Haydn tornar-se-ia, então, o pai da sinfonia, tendo escrito um total de 108 sinfonias.
Este importantíssimo legado deixado por Haydn seria o que estabeleceria a sinfonia como uma forma concreta, e serviria como modelo para todos os compositores que se seguiriam, começando por um dos seus amigos e admiradores (já para não falar de ser um dos mais importantes nomes da música clássica): Wolfgang Amadeus Mozart.
Mozart foi quem “convidou” os compositores que se seguiriam a aventurarem-se na composição de sinfonias – tendo composto a sua primeira sinfonia aos 8 anos, certamente não tinha medo dos critérios incrivelmente específicos que definiam uma sinfonia clássica, que eram bastante estritos na época.
Este compositor acabaria com a módica quantia de 41 sinfonias no seu vasto repertório – a última sendo a fantástica sinfonia Júpiter, precedida por talvez uma das mais famosas sinfonias do compositor, a Sinfonia nº 40 em Sol Menor.
Talvez ainda mais importante, ao alargar esta forma permitiu que houvesse mais liberdade artística na criação da sinfonia, e que obra é que se caracteriza mais pela liberdade artística do que a de Ludwig van Beethoven?
Este, com certeza, viu potencial na criação de sinfonias, a princípio talvez para se vingar de Haydn, seu professor, de quem diz “não ter aprendido nada”, mas depois usando-as para marcar a transição entre o clássico e o romântico (explico tudo isto neste artigo).
Não é nada de exagerado dizer que as sinfonias de Beethoven foram algo verdadeiramente revolucionário. Com um total de nove sinfonias (e originando a maldição dos 9), todas elas são importantíssimas no repertório clássico ocidental, desde a 3ª, Eroica, o seu trabalho de transição para o período Romântico, até à nona, uma obra que nos demonstra o domínio incomparável de Beethoven na área da sinfonia e que nos conta a sua história e tudo aquilo por que passou desde que descobriu que ia ficar surdo, tudo através da música.
Beethoven foi o primeiro “inventor” na sinfonia, digamos assim: trocou o minueto pelo scherzo, inseriu estilos completamente novos, pôs coros, fez trinta por uma linha e o resultado não podia ter sido melhor – estas 9 sinfonias são das relíquias mais preciosas da música clássica ocidental.
A música continuou a evoluir e fizeram-se coisas cada vez mais extraordinárias e fora-da-caixa: a partir de Beethoven, a sinfonia tornou-se um pináculo na obra de um compositor, como que uma magnum opus de sangue, suor e lágrimas que mostrava tudo o que o compositor tinha para dar.
Tornou-se, então, uma espécie de desafio para os compositores, este de produzir algo que os representasse no seu nível de musicalidade mais elevado. No período Romântico, começaria com Schubert, evoluiria para Mendelssohn e continuaria com trabalhos como a fantástica (como nos diz o próprio nome) Symphonie Fantastique, este magnífico trabalho de Berlioz cuja música programática ainda hoje é tocada inúmeras vezes e sempre terá o seu estatuto de genial (aliás, aconselho este vídeo a quem quiser descobrir esta joia em toda a sua grandeza), e depois apareceriam não só um monte de instrumentos novos como também sinfonias de cinco movimentos, finais com coros, tudo o que se possa imaginar para tornar as sinfonias ainda mais brilhantes e especiais.
Depois de uma pausa de duas décadas, em que dominou o poema sinfónico lisztiano, surgiria o segundo período dominante da sinfonia, que nos traria obras magníficas assinadas pelas canetas de génios como Tchaikovsky, Brahms, Bruckner, Dvořák, entre tantos outros – instrumentos continuavam, também a ser adicionados à orquestra sinfónica, e na altura de Mahler, já se podia escrever uma sinfonia para uma variedade indefinida de instrumentos – tanto que ele chegou a usar sinos de Natal nas suas sinfonias!
Com Gustav Mahler vieram outros compositores com um papel relevantíssimo nas sinfonias dos séculos 19 e 20, como Shostakovich, Rachmaninoff, Prokofiev, Sibelius, uns mantendo as formas tradicionais, outros à procura do passado da sinfonia, outros à procura de algo cada vez mais ousado, mas todos procurando algo representativo do que há de melhor na Música.
E pensar que tudo isto veio da Ópera, uma forma que não só proliferou por si só como também se expandiu para formas importantíssimas na cultura musical que conhecemos hoje.
Até à Parte 3 🙂
Percepcionar o parentesco do Musical com a Ópera é relativamente intuitivo… já saber que as Sinfonias derivam da mesma origem, foi para mim uma absoluta revelação!
Artigo muito esclarecedor e fundamentado, como sempre! Obrigado
Muito obrigada pelo comentário!!
Também fiquei muito surpreendida quando descobri a origem da sinfonia, tanto que achei que a sinfonia e o musical mereciam uma parte só para eles!
Ainda bem que gostaste!!
Mariana