Skip to main content

A Sonata ao Luar é uma das sonatas mais célebres da Humanidade, se não a mais célebre.

Por outras palavras, porque não realizar a experiência por si?

Apenas pesquise por sonata no Google e a maior parte dos resultados na categoria de Vídeos são da Sonata ao Luar.

Há um mito que é normalmente associado a esta sonata que vou hoje desmistificar:

Em suma, Beethoven estava muito abatido pelo falecimento de um príncipe da Alemanha, que supostamente era como um pai para ele.

O jovem compositor sofria de carência afetiva, pois o pai era um alcoólico e agredia-o fisicamente. Adicionando a isto, faleceu na rua, por causa do alcoolismo. A sua mãe morreu muito jovem, o seu irmão biológico nunca o ajudou em nada e a sua doença agrava-se. Sintomas de surdez começavam a perturbá-lo, ao ponto de deixá-lo nervoso e irritado.

Beethoven somente podia ouvir se usasse uma espécie de trombone acústico no ouvido. Ele carregava consigo uma tábua ou um caderno, para que as pessoas escrevessem o que lhe queriam dizer, mas elas não tinham paciência para isto, nem para ler os seus lábios…

Notando que ninguém o entendia, nem o queriam ajudar, Beethoven retraiu-se e isolou-se. Foi por todas estas razões que o compositor caiu numa profunda depressão, chegando a redigir um testamento que dizia que ele se ia suicidar.

Beethoven mudou-se para uma pensão pobre e, um dia, uma rapariga cega disse-lhe:

– Eu dava tudo para poder ver o luar.

Ao ouvi-la Beethoven emocionou-se pois afinal ele podia ver, e escrever a sua arte nas pautas.

A vontade de viver volta-lhe renovada e ele compõe a Sonata ao Luar. No seu tema, a melodia imita os passos vagarosos de algumas pessoas, possivelmente os dele e os dos outros, que levavam o caixão mortuário do príncipe, seu protetor…

Usando a sua sensibilidade, Beethoven retratou, através da melodia, a beleza de uma noite banhada pela claridade da lua, para alguém que não a podia ver com os olhos físicos.

Lindo? Até que sim. Verdadeiro? Não.

A começar pela família do Beethoven: o pai dele tornou-se alcoólico, sim, mas não sei se realmente o espancava. A mãe de Beethoven morreu quando ele tinha 17 anos. Isto pode ser perto de onde esta lenda está localizada no tempo, porque ele realmente teve dificuldades depois disso, mas a sonata foi completada em 1801, enquanto estes acontecimentos foram aproximadamente em 1787.

Beethoven teve vários irmãos, no entanto os únicos dois que sobreviveram foram Nicolaus Johann van Beethoven e Kaspar Anton Karl van Beethoven. Mas já são dois, e não só um.

Para além disso, Kaspar ajudou a compor juntamente com Ludwig van Beethoven, mas fica surdo aos 15 anos, como Ludwig, e trabalhou como secretário do irmão durante bastante tempo. Mais detalhes e o resto da biografia dele aqui.

Kaspar Anton Karl van Beethoven
Nicolaus Johann van Beethoven

Quanto ao tal príncipe…

Alguém que pode ter a ver com este dito príncipe é o conde Waldstein, que o enviou para Viena para estudar com Joseph Haydn e que ficou muito seu amigo, ao ponto de Beethoven lhe dedicar algumas das suas obras, como a sonata Waldstein.

Supostamente, diz-se que foi o Príncipe Eleitor de Colónia que lhe pagou a viagem, convencido por Waldstein, mas foi o arquiduque da Áustria que lhe pagou os estudos. Aí sim, ele teve que voltar pouco depois por causa da mãe.

No entanto, o Conde Waldstein morreu só em 1823, muito depois de 1787 ou 1801.

Portanto, esse príncipe só pode ser o tal arquiduque da Áustria, pois foi também Príncipe-Eleitor de Colónia.

O organista da corte, Christian Gottlob Neefe, foi o primeiro mentor e professor de Beethoven. Reconhecendo o presente do seu jovem aluno como intérprete e como compositor, Neefe levou Beethoven à corte, aconselhando Maximiliano Francisco a nomeá-lo como organista assistente. Maximiliano Francisco, arquiduque da Áustria também reconheceu as extraordinárias habilidades do jovem Beethoven. Em 1787, ele deu permissão a Beethoven para visitar Viena para se tornar um aluno de Mozart, mas a visita foi interrompida pela notícia da última doença da mãe de Beethoven e faltam evidências para qualquer contato com Mozart. Em 1792, pouco depois da morte de Mozart, Maximiliano enviou novamente Beethoven em pleno salário a Viena para estudar com Joseph Haydn, Antonio Salieri e outros. O eleitor manteve um interesse no progresso do jovem Beethoven, e vários relatórios de Haydn a Maximiliano detalhando-o são existentes. O príncipe antecipou que Beethoven retornaria a Bonn e continuaria a trabalhar para ele, mas devido à situação política e militar subsequente, ele nunca voltou, optando por seguir uma carreira em Viena.

Conde Ferdinand Ernst Joseph Gabriel von Waldstein e Wartenberg
Captura de ecrã 2022-01-04 215248
Maximiliano, arquiduque da Áustria e Príncipe-Eleito de Colónia

O arquiduque morreu em 1801, ano em que a sonata foi terminada. Mas Beethoven já vinha a debater-se por ficar surdo desde 1796.

Algo aqui não bate muito certo na linha cronológica. Fazia sentido se tivesse apenas a parte do príncipe, mas foi em 1802 que o compositor começou a traçar o novo caminho que tanto ambicionava, e que o levaria à nona sinfonia. Para além disso, a “pensão” mais provavelmente refere-se à sua estadia no campo em Heilingenstadt, que o médico aconselhou na tentativa de melhorar a sua audição, mas isto foi apenas em 1802.

Mas chega de pegar em coisinhas pequenas. Passemos aos factos.

A primeira edição da partitura é intitulada Sonata quasi una fantasia, o mesmo título da sua peça companheira, Op. 27, nº 1. O Groove Music Online traduz este título italiano como “sonata à maneira de uma fantasia”. O subtítulo lembra aos ouvintes que a peça, embora tecnicamente uma sonata, sugere uma fantasia improvisada e fluida”.

E esta peça não foi dedicada a uma rapariga cega numa pensão – foi dedicada à Condessa Julie (Giulietta) Guicciardi.

Giulietta Guicciardi

Beethoven conheceu-a através da família Brunsvik (frequentemente conhecida em inglês como “Brunswick”). Ele era particularmente íntimo às suas primas, as irmãs Therese e Josephine Brunsvik (a quem ensinava piano desde 1799). No final de 1801, ele tornou-se o professor de piano de Guicciardi e, aparentemente, ficou apaixonado por ela.

Ela é provavelmente a “menina encantadora”, sobre a qual escreveu em 16 de novembro de 1801 ao seu amigo Franz Gerhard Wegeler: “A minha vida é mais uma vez um pouco mais agradável, estou fora de casa de novo, entre as pessoas – o senhor mal pode acreditar que desolação, que triste a minha vida tem estado desde estes últimos dois anos; esta mudança foi causada por uma menina doce e encantadora, que me ama e a quem eu amo. Depois de dois anos, estou novamente a desfrutar de alguns momentos de felicidade, e é a primeira vez que sinto que o casamento me pode fazer feliz, mas infelizmente ela não pertence à minha posição – e agora – certamente não me poderia casar agora. ”

Em 1802, ele dedicou-lhe (usando a forma italiana do seu nome “Giulietta Guicciardi” para se conformar com as convenções de dedicatórias) a Sonata para Piano nº 14, que embora originalmente intitulada Sonata quasi una Fantasia (como a sua peça companheira, op. 27 nº 1) posteriormente se tornou conhecida pelo popular apelido Sonata ao Luar.

Esta dedicação não era a intenção original de Beethoven, e ele não tinha Guicciardi em mente ao escrever a Sonata ao Luar. Thayer, no seu livro “Vida de Beethoven”, afirma que a obra que Beethoven originalmente pretendia dedicar a Guicciardi era o Rondó em Sol, Op. 51 No. 2, mas este deveria ser dedicado à condessa Lichnowsky. Então, ele procurou ao último momento uma peça para dedicar a Guicciardi.

Em 1823, Beethoven confessou ao seu então secretário e posteriormente biógrafo Anton Schindler, que ele estava de facto apaixonado por ela na época.

Na sua biografia de Beethoven de 1840, Schindler afirmou que “Giulietta” era o endereço da carta da “Amada Imortal”. Esta noção foi imediatamente questionada (embora não em público) pela sua prima Therese Brunsvik:

“Três cartas de Beethoven, supostamente para Giulietta. Poderiam ser uma farsa?”

As dúvidas de Therese eram bem fundadas porque, ao contrário de Schindler e outros contemporâneos, ela sabia tudo sobre o intenso e duradouro romance entre Beethoven e sua irmã Josephine: “Três cartas de Beethoven… devem ser para Josephine, que ele amou perdidamente.”

Esta página inclui uma explicação mais detalhada da carta e da probabilidade de ser para Josephine.

Josephine Brunsvik

O adagio sostenuto causou uma forte impressão em muitos ouvintes; por exemplo, Berlioz disse que “é um daqueles poemas que a linguagem humana não sabe qualificar”. O aluno de Beethoven, Carl Czerny, chamou-a de “uma cena noturna, na qual uma voz fantasmagórica triste soa à distância”.

Hector Berlioz
Carl Czerny

O nome Moonlight Sonata vem de observações feitas pelo crítico musical e poeta alemão Ludwig Rellstab.

Em 1832, cinco anos após a morte de Beethoven, Rellstab comparou o efeito do primeiro movimento ao do luar brilhando sobre o Lago Lucerna, na Suíça.

Ludwig Rellstab
Lago Lucerna

Dentro de dez anos, o nome “Moonlight Sonata” (“Mondscheinsonate” em alemão) estava a ser usado em publicações alemãs e inglesas. Mais tarde no século XIX, a sonata era universalmente conhecida por este nome.

Muitos críticos se opuseram à natureza subjetiva e romântica do título “Luar”, que às vezes foi chamado de “uma abordagem enganosa de um movimento com quase o caráter de uma marcha fúnebre” e “absurdo”. Outros críticos aprovaram o apelido, considerando-o evocativo ou de acordo com a sua própria interpretação da obra.

O fundador da Gramophone, Compton Mackenzie, considerou o título “inofensivo”, observando que “é uma tolice os críticos austeros chegarem a um estado de raiva quase histérica com o pobre Rellstab” e acrescentando: “o que estes críticos austeros não conseguem entender é que o público em geral respondeu à sugestão do luar nesta música. Senão, a observação de Rellstab há muito teria sido esquecida. ”

E foi assim que a Sonata ao Luar ganhou o seu nome. Não por causa de uma rapariga cega numa pensão que nunca tinha visto o luar, mas sim por causa de um musicólogo que decidiu que ficava bem com um lago na Suíça.

0 0 Votos
Avaliação Artigo
Subscrever
Notificar de
7 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Rafael Torres
Rafael Torres
20 de Janeiro, 2022 14:00

Muito boa, sua pesquisa. Estou também fazendo um blog sobre música clássica. Chama-se Arara Neon. Se puder, dê uma passada por lá. É http://www.araraneon.com.br. Parabéns pelo seu blog!

Fernando Freitas
Fernando Freitas
23 de Janeiro, 2022 3:31

Amo música clássica e fiquei atento a todas as direções do texto muito explicativo e bastante completo. Parabéns por tão cuidadosa pesquisa!

Ana Maria Ferreira
Ana Maria Ferreira
6 de Janeiro, 2022 1:10

Fato × Fake
Obrigada por atender à solicitação de esclarecimento/desmistificação sobre a recorrente lenda acerca da origem da ‘Sonata ao Luar’ de Beethoven. Parabéns pela amplitude do artigo, muito além da propalada versão romanceada circulante.

Mariana
Mariana
Resposta a  Ana Maria Ferreira
6 de Janeiro, 2022 11:58

Olá!!
Fico muito feliz que tenha gostado.
Foi muito interessante para mim fazer este artigo pois nunca tinha ouvido esta lenda ???? foi interessante descobrir mais sobre esta sonata dado que acho que se pode dizer que é das sonatas mais famosas de todos os tempos.
Novamente muito obrigada pela sugestão e um bom dia para si!!

Mariana

Mariana
Mariana
21 de Janeiro, 2022 15:51

Fico muito feliz que tenha gostado!! ????
De certeza que passarei também pelo seu blog ❤❤ aliás, vi assim muito rápido, mas pareceu-me muito interessante!!
Muito obrigada por partilhar e um bom dia para si!! ????

Fernando Freitas
Fernando Freitas
23 de Janeiro, 2022 4:31

Amo música clássica e fiquei atento a todas as direções do texto muito explicativo e bastante completo. Parabéns por tão cuidadosa pesquisa!

7
0
Gostaria da sua opinião. Por favor comente.x