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Creio que a forma mais fácil de começar este artigo seria “Sofia Asgatovna Gubaidulina nasceu no sítio tal no dia tal do ano tal”. Quer dizer… de que outra maneira é que o poderia pôr? Só para o título já foi um bico-de-obra sempre a remoer-me a cabeça! E nem ficou como eu queria…

Por isso acho que o melhor é começar por explicar porque é que eu raramente (ou mesmo nunca) faço biografias de compositores e apareço aqui com uma de repente.

A minha intenção era que isto não fosse apenas uma biografia – a razão pela qual eu escolhi esta compositora para o artigo de hoje foi por causa da voz dela como compositora, que é algo que eu nunca tinha ouvido até então. E com então quero dizer, mais ou menos, até há umas semanitas.

A música dela pode, por vezes, ser descrita como uma nova perspetiva na afinação, ou uma tentativa de mexer com o ser humano, e creio que foi a própria Gubaidulina que disse que queria, com a sua música, estar mais perto de Deus.

Ao ouvir o seu Ich und Du, também conhecido como 3º Concerto para Violino, tenho a certeza de uma coisa: decerto não a podemos encaixar facilmente numa época da música erudita baseando-nos em estilo.

Concordo plenamente com a ideia de que esta peça mexe com a psicologia humana. Eu, que acho que nem cheguei a quatro minutos do Rite of Spring porque aquilo me parecia um monte aleatório de sons em cima dos outros (sem ofensa a quem gosta, só ouvi uma vez e, como já referi, só 4 minutos, decerto tem partes melhores), depois de ouvir a peça parei em espanto com este monte de sons aparentemente aleatórios mas mais expressivos do que harmonias inteiras.

Até hoje não consigo perceber o que a peça me fez sentir. Mas foi algo completamente novo, que nem as melhores peças impressionistas que já ouvi me despertaram.

Lembro-me também que Schoenberg, atonalista, queria que as suas peças fossem tocadas com expressividade, mas que quem as interpretava não o conseguia fazer corretamente, provavelmente devido à confusão que a falta do sistema tonal temperado provocava.

Outro elemento que achei muito importante para a implantação desta atmosfera foi a presença de sinos. Mais uma vez, há outras peças com instrumentação também… digamos… invulgar. Como a Abertura de 1812, de Pyotr Illich Tchaikovsky, que usa um canhão, ou a Sinfonia nº 4 de Gustav Mahler, que usa sinos de Natal.

É um pouco de tudo e, ao mesmo tempo, nada como os outros. Mas para mim, esta peça em particular foi como que se me fizesse ver uma quarta dimensão em que só via o azul do céu, os sinos e um desfocado de um suave laranja-claro. O que é um bocado específico demais, mas… oh bem. É interessante ver, para além de todos estes bocadinhos de estilo, a Sinestesia de Scriabin a funcionar.

Mas o que eu acho que foi o mais importante que me transmitiu foi um sentido de presença. Presença no Mundo, na realidade, a realização constante de que existo, e que não reparo nisso detalhadamente, mas que existo. Que sou um ser, com três dimensões, a atravessar o espaço-tempo, e que, de certa forma, sinto esta constante a passar por mim como se o sentisse na pele.

Um aviso: é contemporâneo carregado. Mas que (na minha opinião) é bom, é.

O que, para mim, é interessante sobre a sua biografia é que ela chegou a conhecer Shostakovich. Conhecendo os altos e baixos da sua relação com a censura da União Soviética, é curioso ver estes mesmos efeitos repercutidos na biografia desta compositora e como ela conseguiu levar a avante o seu estilo próprio.

Agora sim: Sofia Asgatovna Gubaidulina nasceu em Chistopol, na República do Tartaristão, no dia 24 de Outubro de 1931. É uma compositora russa e está viva (e ainda bem). Tem 90 anos.

‎Apesar de ambos os pais terem tido empregos a tempo inteiro, a sua mãe Fedosiya Fyodorovna como professora e o seu pai Asgat Masgudovich Gubaidulin como engenheiro, a situação financeira da família era muito difícil e Sofia muitas vezes passava fome quando criança.

Quando Sofia tinha cerca de sete meses de idade, a família partiu para a capital da cidade de Kazan em busca de melhores condições de trabalho e de vida. Sofia começaria a desenvolver o seu amor pela música com apenas cinco anos de idade, com a sua irmã Vera no piano experimentando as possibilidades de combinações de sons e limites instrumentais, eventualmente interessando-se pela composição.

Os pais de Sofia encorajaram o amor dela pela música ao comprar um Schlosser desgastado para a casa deles. E assim, com a sua irmã, ela passava horas no piano, testando diferentes maneiras de manipular a acústica do piano para obter os sons mais interessantes e diferentes possíveis.

Sofia começaria a tocar piano sozinha um ano depois. Além disso, apesar das más condições de vida e inseguranças financeiras que os seus pais enfrentavam, a jovem Sofia foi matriculada na Escola de Música Infantil nº 3, onde começou a estudar música formalmente.‎

Mais tarde, Gubaidulina entrou no conservatório Kazan para continuar a estudar música. Devido à sua devoção à Ortodoxia Russa durante sua infância, foi enquanto Gubaidulina estava matriculada nesta escola que ela começou a perceber que a música tinha poderes quase sobrenaturais para incutir esperança, coragem e tranquilidade nos ouvintes. Assim, através das suas obras, Gubaidulina procurou instigar esperança e fé num mundo para além do mortal.

Mas aqui é que entra o problema‎: repertório excessivamente espiritual e com conteúdo e crenças religiosas era desaprovado pelo Estado Soviético. Não só os temas espirituais foram desencorajados, mas as partituras e materiais da música ocidental também foram fortemente regulamentados, ou mesmo totalmente proibidos. Apesar de ter a exceção de Bartók, música como a de Igor Stravinsky, Charles Ives ou John Cage era altamente regulamentada ou até mesmo proibida. Assim sendo, Sofia teve de manter este gosto em segredo.

Igor Stravinsky
John Cage
Charles Ives

Depois de se formar na Universidade Kazan em 1954, Sofia começou a estudar no Conservatório de Moscovo, com um compositor chamado Nikolai Peiko. E agora chega a pólvora: este compositor foi aluno de Dmitri Shostakovich, e apresentou-lhe Sofia.

Os dois acabariam por se tornar amigos.

Nikolai Peiko
Dmitri Shostakovich

Ainda para adicionar a este bocadinho de felicidade, as relações internacionais com o Ocidente começaram a recuperar-se por esta altura, levando involuntariamente a uma presença crescente da cultura euro-ocidental, materiais e sensibilidades dentro do país anteriormente confinado conhecido como um período chamado “Degelo Khrushcev”. ‎

‎Como consequência dos seus interesses pela psicologia humana e nas buscas experimentalistas em sintonia e orquestração, grande parte da sua música foi considerada irresponsável e criticada regularmente pelos seus professores durante o seu estudo naquela instituição.

A afinidade de Sofia por afinação alternativa, pares de instrumentos exploratórios, gostos politonais e polirítmicos, e especialmente as suas crenças psico-espirituais levaram muitos estudantes e membros do corpo docente a dizer que ela estava a seguir o “caminho errado”. Em resposta, Shostakovich apoiou as suas experiências musicais e encorajou-a a encontrar a sua voz enquanto compositora.

Ao ter-lhe mostrado o seu projeto de graduação da universidade, a sua Primeira Sinfonia, uma experiência que descreve como tendo corrido muito mal, Shostakovich ofereceu-lhe o seu apoio e disse-lhe:

“Espero que sigas o caminho errado.”

Após se formar no Conservatório de Moscovo no início da década de 1960, Sofia Gubaidulina trabalhou como compositora freelancer, principalmente para o cinema. Isto permitiu-lhe o espaço para testar novos efeitos composicionais e pares instrumentais com relativa liberdade, ao mesmo tempo em que ganhava um salário de que tanto precisava. Além disso, por dez anos a partir de 1960, Sofia trabalhou no Moscow Experimental Electronic Music Studio, onde trabalhou ao lado de outros compositores experimentalistas, incluindo dois que viriam a formar a troika pós-Shostakovich [trio] à qual Gubaidulina está agora associada. Isto incluiu o “não conformista” Edison Denisov e o conhecido compositor soviético-alemão Alfred Schnittke. ‎

Edison Denisov
Alfred Schnittke

Em 1975, depois de ter encontrado a sua voz e acumulado experiência prática com eletrónica e sons experimentais, formou o neo-folk “Astreja Ensemble”. Apesar de serem diretamente influenciados pela cultura eslava e os seus instrumentos tradicionais, sons folclóricos e estética natural de improvisação, os críticos soviéticos foram incrivelmente hostis devido ao novo estilo do grupo. Depois de tentar ter algumas das suas peças executadas em festivais de música em meados dos anos 70, em 1979, Sofia, juntamente com outros seis compositores soviéticos, foram colocados numa lista negra sem performance possível devido à natureza desagradável percebida da sua obra.

O tratamento do grupo, infamemente chamado de “Os Sete de Khrennikov”, foi próximo de como Shostakovich, Prokofiev e Myakovsky foram tratados em 1948, embora sem a mesma ameaça de morte. Apesar deste revés, Sofia continuaria a desenvolver o seu estilo totalmente único, vendo a sua proibição como uma coisa ferozmente positiva porque estava livre para experimentar sem censura. ‎

No início da década dos oitentas, Gubaidulina teve os seus primeiros contactos com técnicas de composição como as séries de Lucas e Fibbonaci.

Foi por esta altura que começou a ganhar fama, pois foi comissionada pelo violinista Gidon Kremer para escrever um concerto para violino, que seria o seu 1º Concerto para Violino e uma das suas peças mais conhecidas – Offertorium.

Acabou por ser estreado pelo próprio Kremer, mas as mudanças estavam só a começar.

Gidon Kremer

Conseguiram levar a partitura para a tocar na Áustria, e já foi difícil sair da União Soviética, e a partir daquela estreia o legado e carreira de Gubaidulina nunca mais seriam os mesmos.

No fim da década de 80 ela mudou-se para a Alemanha, onde ainda vive, e foi-lhe oferecido por Mstislav Rostropovich um piano Steinway (ena pá, à grande e à francesa – só para relembrar, o Steinway mais barato custa 35 mil dólares mas não é de cauda – e o dela é), muito diferente do Schlosser com que cresceu.

Mstislav Rostropovich
Mstislav Rostropovich

Desde aí, teve a liberdade de conhecer outros compositores contemporâneos e fazer a sua carreira evoluir, sem restrições ou censura.

E é isso. Está aqui para as curvas 😉

Deixo em baixo algumas peças dela (algumas que já pus antes, mas é para ficar tudo juntinho):

Não encontrei muitas partituras grátis, mas tem algumas neste site.

Para ouvir:

Do meu ponto de vista, a arte da Música expande as fronteiras do Conhecimento porque nos permite aproximar-nos do maior do nosso ser. A arte da Música é capaz de tocar e abordar os mistérios e leis existentes no Cosmos e no Mundo.

Sofia Gubaidulina
Compositora

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Manuel Costa
Manuel Costa
20 de Março, 2022 15:17

Efetivamente trata-se de uma compositora espantosa. Parece até um verdadeiro milagre o facto de uma mulher de origens e meios tão humildes ter conseguido chegar a um nível verdadeiramente espantoso de criatividade e arte.
Foi muito boa ideia trazer ao “Pianíssimo” o conhecimento da obra desta genial mulher, de forma tão detalhada e esclarecedora. Parabéns Mariana.

Mariana
Mariana
Resposta a  Manuel Costa
21 de Março, 2022 15:30

Muito obrigada pelo comentário ❤
Acho que esta compositora é realmente algo de totalmente diferente, e que a música dela é mesmo única. Acho que é mesmo algo de incrível que possamos ter a oportunidade de conhecer esta compositora e apreciar a sua obra ????

Maria Teresa Costa
Maria Teresa Costa
20 de Março, 2022 15:34

Obrigada Mariana pelas pesquisas que fazes. Gostei muito desta compositora . A sua música leva-nos a meditar. Uma grande mulher que, apesar das dificuldades económicas dos pais e de outras ainda maiores impostas pelo regime do país onde nasceu e viveu durante muito tempo, conseguiu, pelo seu enorme talento, tornar-se na excelente compositora que é.

Mariana
Mariana
Resposta a  Maria Teresa Costa
21 de Março, 2022 15:35

Graças a Deus que o seu talento veio ao de cima e conseguiu ser reconhecida como a talentosa compositora que é!!
Ainda bem que gostaste da compositora e muito obrigada pelo comentário ????

quim rosas
quim rosas
20 de Março, 2022 22:36

Felizmente conseguiu libertar-se a tempo de se poder dar a conhecer ao mundo, é incrível a que ponto chegava a falta de liberdade, parabéns pelo artigo, mais um muito bem escrito!

Mariana
Mariana
Resposta a  quim rosas
21 de Março, 2022 15:42

Tantos compositores que foram afetados por este regime… Shostakovich, Tchaikovsky… é mesmo uma sorte que o talento de Gubaidulina seja reconhecido e apreciado e que a sua obra possa ser desfrutada livremente hoje em dia, assim como a obra de compositores que também eram ou proibidos ou intensamente regulados, como Ives, Cage ou Stravinsky.
Ainda bem que gostaste e muito obrigada pelo comentário ????

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