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Será que Liszt escreveu o seu Liebestraum nº 3 numa tonalidade qualquer porque lhe apeteceu? Ou será que o lá bemol maior tem alguma razão de ser?

E será que escreveu a Consolação nº 3 em ré bemol só para ter uma armação de clave algo complicada? Ou foi porque achou que era uma tonalidade que se adequasse por algum motivo em específico?

E Wagner? Por que carga de água é que escreveu a Cavalgada das Valquírias em si menor?

Tudo isto, e decerto muitos outros exemplos têm uma razão, uma razão que, muito resumidamente, é o facto de que certas tonalidades expressam certos sentimentos.

Numa explicação um pouco mais extensa, cada tonalidade nos remete para um certo sentimento, apenas pela sua sonoridade. E vai bem mais profundo do que maior ser feliz e menor ser triste.

Neste artigo vou explorar esta relação, as conclusões de vários compositores barrocos que a tentaram estudar e conclusões de algumas experiências que fiz com tonalidades, análise de algumas peças com estas relações, a teoria dos afetos, e a relação deste atributo à Sinestesia de Scriabin, já explorada antes, porém com menos profundidade, neste artigo, neste último tópico testando se os significados das cores correspondem aos significados das tonalidades.

O filósofo grego Aristóteles diferencia onze tipos de emoção baseados na mistura de prazer e sofrimento: desejo, ira, temor, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, saudade, ciúme e compaixão. Esta visão está proposta na obra “Retórica de Aristóteles”. Segundo ele, a música possuía a qualidade de transmitir impressões e criar diversos estados de ânimo.

Porém o que é que aconteceria se eu quisesse escrever uma peça que demonstrasse tristeza? Pura e simplesmente escolhia uma tonalidade menor? Não.

Se fosse do tipo de tristeza que temos por perder alguém ou alguma coisa, provavelmente sol menor.

E não é só porque me deu na cabeça! Aposto que o senhor Fréderic Chopin concordaria comigo.

Chopin originalmente intitulou o seu Noturno op. 15 nº 3 em Sol Menor “No cemitério” quando o compôs, um dia depois de assistir a uma apresentação de Hamlet, mas apagou a inscrição quando a peça foi impressa, dizendo: “Deixe-os descobrir por si mesmos”.

No entanto, se calhar se estivesse à procura de um som imponente e poderoso, poderia escolher também esta tonalidade. E aí, dou como exemplo o 1º Movimento do 1º Concerto para Violino de Max Bruch e o Prelúdio op. 23 nº 5 de Sergei Rachmaninoff.

Desde o período Barroco que compositores e teóricos se vêm a deparar com o facto de que podem usar determinadas tonalidades para levar o ouvinte à onda de sentimentos que querem transmitir ao ouvinte enquanto a peça é tocada. Pura e simplesmente pela Natureza das tonalidades podemos distinguir sentimentos diferentes, e todos estes diferentes sentimentos ligados às tonalidades foram explorados por personalidades como Johann Mattheson, Jean-Philippe Rameau, Johann Joachim Quantz e Marc-Antoine Charpentier.

Johann Mattheson
Jean-Philippe Rameau
Johann Joachim Quantz
Marc-Antoine Charpentier

A Exploração das Tonalidades no Barroco

No seu tratado “Das Neu-Eröffnete Orchestre”, Johann Mattheson afirma que é “do conhecimento de todos” que cada tonalidade possui características próprias, que diferenciam uma tonalidade da outra pelos efeitos que provocam. Entretanto, afirma que não há unanimidade “quanto aos Affecten que cada tonalidade desencadeia, quais e como são.”

Ao mesmo tempo critica os seus contemporâneos, que “pensam que o segredo está na terceira menor ou maior”, afirmando que “estes não chegaram ainda muito longe nas suas investigações”

A partir do §7, Mattheson começa a descrever as características de cada tonalidade. Começa com a tonalidade de ré menor:

“Se seguirmos o ordenamento de consenso, começamos com o Tono Primo, Ré menor (Dório), analisando esta tonalidade, podemos constatar que ela contém algo devoto, calmo, e ao mesmo tempo, grandioso, confortável e satisfeito; vem daí que a mesma seja capaz de fomentar a reflexão em assuntos de igreja (Kirchen-Sachen) e a paz de espírito na vida quotidiana (communi vita); isto não impede a tonalidade de também portar algo de divertido, não necessariamente saltitante e sim, fluente com sucesso. “Ad Heroicum Carmen modulandum est aptissimus. Habet enim miram cum alacritate gravitatem &c.” disse Corvino, ou seja: “é a [tonalidade] mais adequada para poemas heróicos. Isto porque, além da sua agilidade, tem uma maravilhosa gravidade”. “Gravis est & constans” – Aristóteles chamou-a de “séria e constante”.

As correspondências feitas por Mattheson para as tonalidades são as seguintes:

  • Ré menor: Devoto, calmo, fluente, grandioso
  • Sol menor: Serenidade, amabilidade, vivacidade
  • Lá menor: Lamentosa, respeitável e serena
  • Mi menor: Pensamentos pesados, aflitos e tristes
  • Dó maior: Rude e atrevido
  • Fá maior: É capaz de exprimir os mais belos sentimentos do mundo
  • Ré maior: Penetrante e teimosa
  • Si menor: Bizarro e melancólico
  • Sol maior: Insinuante e falante
  • Dó menor: Amável e triste
  • Fá menor: Suave, serena, profunda e pesada
  • Si bemol maior: Divertido e exuberante
  • Mi bemol maior: Patético
  • Lá maior: Paixões lamentosas e tristes
  • Mi maior: Desespero
  • Fá sustenido menor: Tristeza, aflição

Os resultados de Gatti (1997) ao compilar as opiniões dos quatro teóricos musicais em baixo são parecidos com os seguintes:


Apesar de já ter adicionado algumas correspondências a Charpentier, encontram-se no PDF seguinte todas as suas correspondências:

Por esta altura, no Renascimento, portanto, começou a surgir a doutrina dos afetos, que se tornou parte da retórica musical, relevante para compreender música barroca. Aliás, nesta altura, considerava-se que o compositor escrevia algo com um certo sentimento (afeto), que tinha de ser demonstrado pelo intérprete (transmissor) para que pudesse chegar ao ouvinte (recetor).

Doutrina dos Afetos

A doutrina Affektenlehre, também conhecida como doutrina dos afetos, era uma teoria estética musical sistematizada e amplamente aceite que propunha que recursos técnicos específicos e bem definidos utilizados na composição poderiam despertar no ouvinte emoções ao mesmo tempo únicas e universais.

A doutrina foi formulada pela primeira vez no final do Renascimento, através do trabalho de músicos florentinos que estavam absortos no ressurgimento da música grega antiga e que foram os fundadores da ópera (e já vou falar da relação de Monteverdi com esta teoria mais à frente).

De acordo com a sua interpretação das ideias de Platão, eles procuraram estabelecer relações exatas entre as palavras e a música. Para eles, uma ideia musical não era apenas a representação de um afeto, mas a sua verdadeira manifestação.

Vários teóricos barrocos como Athanasius Kircher, Andreas Werckmeister, Johann David Heinichen, assim como Johann Mattheson catalogaram e sistematizaram os recursos técnicos da doutrina. Na sua obra Der vollkommene Capellmeister, Mattheson aprofunda o assunto. Ele afirmou que intervalos largos induziam alegria, enquanto intervalos menores provocavam tristeza, e a raiva era caracterizada como uma harmonia áspera associada a um ritmo rápido.

A teoria teve uma influência particularmente significativa no desenvolvimento da ópera. A série de óperas foi desenvolvida em modelos padronizados para cada tipo de emoção a ser retratada, e as árias foram construídas em modelos padronizados para cada tipo de emoção a ser ilustrada. As árias de fúria, por exemplo, geralmente eram escritas em ritmo acelerado, com muitas vocalizações de coloratura e uma ampla gama de dinâmicas.

Estas árias de ira são comummente encontradas na clave de ré menor, e as árias de amor eram regularmente compostas em lá maior. Tais cláusulas são tão padronizadas que sempre que um cantor não gostasse de uma canção escrita para ele por qualquer motivo, poderia facilmente substituí-la por uma de sua autoria, ou de alguma outra fonte, desde que transmitisse o mesmo afeto.

Há outros afetos com descrições de coloratura musical para além de alegria, tristeza e raiva, como o amor, o desespero e a esperança.

Abordagens musicais ligadas à esfera emocional foram progressivamente padronizadas e posteriormente adotadas nas composições de outros artistas, como nas composições de Claudio Monteverdi, um bom exemplo desta outra parte da teoria dos afetos.

Claudio Monteverdi

Segundo ele, os três sentimentos da alma humana que merecem ser transmitidos através da música são a ira, a moderação e a humildade, aos quais os traços de tamanho adequado da voz, “alto, baixo ou médio”, bem como os três gêneros, “agitado”, “delicado” e “temperado” combinam. Se a letra é sobre um combate, o estilo musical é “vívido”, que foi desenvolvido por Monteverdi e consiste em ritmos irregulares, notas de valor muito curto e sequências de acordes dissonantes.

O estilo “temperado”, com curvas melódicas mais soltas e acordes mais consonantes, é usado nas passagens mais evocativas. Estas abordagens foram incorporadas em fórmulas que se baseavam em estratégias retóricas e visavam os mesmos mecanismos. Cada indivíduo ou figura é apresentado com um conjunto de significados que constituem a base de uma sequência de fórmulas expressivas. As revisões teóricas e invenções musicais de Monteverdi foram particularmente fundamentais no estabelecimento do melodrama, género musical que verá triunfar na Escola Italiana nos anos seguintes.

Exemplos para demonstrar a influência das tonalidades na atmosfera emocional da peça

Nesta parte do artigo, para além de verificar exemplos com as tonalidades de ré menor e lá maior, irei estabelecer uma relação das tonalidades usadas com a emoção expressa por algumas peças de vários períodos da história da música.

Talvez a mais conhecida para a categoria das árias de ira em ré menor seja a ária “Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen” (Ária da Rainha da Noite), parte da ópera de Mozart “A Flauta Mágica” (Die Zauberflöte), em que a Rainha da Noite ordena a Pamina que mate Sarastro ou então a deserdará e amaldiçoará.

No entanto, há muitas mais predefinições usadas em árias na área das tonalidades:

A ligação entre Ré maior, tonalidade do triunfo, vitória e gritos de guerra, e a ária do Conde de Le nozze di Figaro, ou a natureza descontente e mal-humorada de sol menor com a abertura da primeira ária da Rainha da Noite em Die Zauberflöte (“Zum Leiden bin ich auserkoren”), são dois exemplos.

“Cara speme” de Sesto (Giulio Cesare), “Mi trad quell’alma ingrata” de Donna Elvira (Don Giovanni) e “Aprite un po’ quegl’occhi” de Figaro (Le nozze di Figaro) são todos escritos em mi bemol maior, tonalidade de amor, devoção e diálogo com Deus. No caso de Sesto, ele está claramente influenciado pela ideia de vingar o assassinato de Pompeu; Elvira é, sem dúvida, dedicada a Don Giovanni, e ela está a rezar pela sua salvação; As reflexões raivosas de Figaro sobre a psicologia feminina são uma espécie de diálogo de homem para homem com Deus.

“Da tempeste il legno infranto” de Cleópatra (Giulio Cesare), “Per pietà” de Fiordiligi (Così fan tutte) e “Ó sono, por que me abandonas?” (Giulio Cesare) foram apenas alguns poucos casos de árias em mi maior. Semele, de Handel, foi escrito na chave de Mi maior, que está ligada ao entusiasmo, riso, excitação e deleite. É evidente na ária de Cleópatra, mas as decisões de Fiordiligi e Semele revelam mais sobre a sua percebida seriedade.

Mais relações com tonalidades podem encontrar-se aqui.

Agora, pegando numa peça de cada período:

1. Período Barroco: Toccata e Fuga em Ré Menor, Johann Sebastian Bach

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Nesta peça, eu diria que a definição que mais se aplica seria a de Charpentier, “grave e devoto”.

Esta peça, sendo escrita para órgão, é conhecida como assustadora, talvez devido à sonoridade e reverberação do som no próprio instrumento.

Diria que esta armação de clave, contudo é uma das mais controversas. Neste artigo da Rolling Stone, aborda-se mais em detalhe todas as possibilidades de uso desta tonalidade, incluindo a de Christian Friedrich Daniel Schubart, que considero também adequada a esta peça, que afirma que esta tonalidade é “pensativa”, uma tradução muito pouco fiável da palavra original, mas que pretende significar que é uma tonalidade que evoca pensamentos que nos fazem sentir tristes, zangados ou preocupados.

2. Período Clássico: Eine Kleine Nachtmusik, I. Allegro, Wolfgang Amadeus Mozart

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Esta peça, na clave de sol maior, pode ser facilmente caracterizada pelos julgamentos de “amoroso”, “prazeroso”, “afetuoso”, ou “docemente alegre”, como foi caracterizada esta tonalidade por Mattheson, Quantz, Rameau e Charpentier, no entanto creio que a que mais se adequa neste caso é, novamente, a de Charpentier, “docemente alegre”.

A peça, cujo título se traduz para “Pequena Serenata”, é inegavelmente alegre, talvez por ser para ser tocada à noite ou ao ar livre, e não propriamente num concerto formal de música clássica de um solista.

3. Período Romântico: Valse de L’Adieu, op. 69 nº 1, Fréderic Chopin

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Curiosamente, pelo menos no quadro de Gatti não se encontra esta tonalidade caracterizada por nenhum dos quatro teóricos que nela entraram.

No entanto, neste artigo da Interlude, afirma-se que, de acordo com a opinião do pianista, compositor e educador austríaco Ernst Pauer, a tonalidade de lá bemol maior é “cheia de emoção, e repleta de uma expressão sonhadora”, afirmação que comentam com a frase “Quando procuramos uma música cheia de “expressão sonhadora”, não podemos fazer nada melhor do que olhar para Schubert e Chopin.”

A história por detrás desta peça, que foi abordada neste artigo, é que, resumidamente, foi escrita como, lá está, uma “valsa de despedida” para uma rapariga chamada Maria Wodzińska, com quem Chopin quase casou. Mas penso que nem é preciso saber a história para ouvir esta peça e reconhecer as características da tonalidade.

Realço ainda que, nesta tonalidade, temos outra peça cheia de emoção e expressão sonhadora, que é nada mais, nada menos do que o magnífico Liebestraüm nº 3 de Franz Liszt.

4. Movimento Impressionista: Suite Bergamasque, III. Clair de Lune, Claude-Achille Debussy

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Esta peça, na tonalidade de ré bemol maior, é um dos mais conhecidos exemplos do repertório impressionista. Christopher Schubart, no seu livro Ideen zu einer Aesthetik der Tonkunst, descreve a tonalidade de ré bemol maior como: “Uma tonalidade lasciva, degenerando em tristeza e êxtase. Não pode rir, mas pode sorrir; ele não pode uivar, mas pode pelo menos fazer uma careta ao chorar. Consequentemente, apenas personagens e sentimentos incomuns podem ser trazidos à tona nesta tonalidade.”

Consequentemente, apenas personagens e sentimentos incomuns podem ser trazidos à tona nesta tonalidade.

Que tal apenas o cenário da lua por cima do mar? Porque, sinceramente, é o que eu penso quando ouço esta peça. Acho que Debussy não podia ter escolhido uma tonalidade melhor para uma peça tão meditativa na atmosfera em que se envolve.

5. Século XX/XXI: Valsa das Flores (O Quebra-Nozes), Pyotr Illich Tchaikovsky

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Esta peça, juntamente com o Pas de Deux e a Dança da Fada de Açúcar, é das mais famosas desta suíte. Escrita na tonalidade de ré maior, é parte do Ato II, caracterizado pela feliz Clara com o Príncipe Quebra-Nozes na Terra dos Doces. Todos os teóricos presentes na tabela de Gatti concordam que esta é uma tonalidade alegre, o que, na minha opinião, retrata na perfeição a felicidade transmitida por esta peça.

Outra coisa que considero interessante sobre outra peça que não é em ré maior, mas logo no início rapidamente modula para ré maior: A Cavalgada das Valquírias de Wagner, referida no início do artigo, começa em si menor, mas segue numa modulação para a sua relativa maior, ré maior, criando o outro aspeto, para além de alegre, apresentado por Charpentier: o de ser uma tonalidade guerreira.

Será que existe uma relação entre a Sinestesia de Scriabin e a Teoria dos Afetos?

Esta foi uma pergunta que me surgiu logo quando comecei a idealizar como iria construir este artigo, pois sempre achei que, se as tonalidades tinham significados diferentes por si só, era por causa das cores a que as associava.

Neste artigo, um dos meus primeiros no Pianissimo, eu falo sobre esta Sinestesia de Scriabin. No entanto, hoje tratarei do assunto novamente, e verificarei se existe um paralelo entre estes atributos: as tonalidades, as cores e os sentimentos que elas provocam.

A Sinestesia de Scriabin é uma particularidade cognitiva que algumas pessoas possuem que lhes permite associarem uma determinada peça, nota, acorde, tonalidade, etc. a uma cor.

Esta sinestesia pode vir em todas as formas e feitios. Vários músicos a tinham, como por exemplo Nikolai Rimsky-Korsakov, Alexander Scriabin (claro), Olivier Messiaen, e Franz Liszt (coitados dos músicos que tinha de perceber o que é que “tocar menos violeta” queria dizer).

E aposto que todos eles tinham sinestesias diferentes! Creio que a única nota da sinestesia do próprio Scriabin com a qual eu concordava era o vermelho do dó.

Nalguns PDF’s que usei como fontes para o artigo que irei colocar no fim do mesmo há um (A Melodia das Cores, tese de Tayane Orozco) que tem um capítulo que fala na relação entre harmonia na pintura e harmonia na música. Aconselho a quem quiser ler. Apesar de não o ter lido todo, pareceu-me interessante.

O que me leva a outro assunto que queria abordar brevemente: a sinestesia de Kandinsky.

Uma maneira interessante de a abordar é esta experiência do Google Arts and Culture, onde podemos, para além de, primeiramente, relacionar as formas e cores com o som de acordo com a sinestesia de Kandinsky, ouvir um dos seus quadros mais conhecidos, Yellow-Red-Blue.

Yellow-Red-Blue, por Wassily Kandinsky
Wassily Wassilyevich Kandinsky

Este pintor associava, por exemplo, o vermelho com o violino, mas ao mesmo tempo com a inquietação. Importante figura do abstracionismo, as obras que fazia, para ele, faziam sentido como sendo som que ele ouvia. “A cor é o teclado, os olhos são as harmonias, a alma é o piano com muitas cordas. O artista é a mão que toca, tocando uma tecla ou outra, para causar vibrações na alma”, conta-nos o pintor, referindo-se, provavelmente, ao seu processo criativo, que penso eu que a partir desta frase podemos descrever como intimamente ligado à sua sinestesia.
Para verificar se existe uma relação entre a Sinestesia de Scriabin e os “afetos” sugeridos pelas várias tonalidades, passo a apresentar os supostos “significados” de cada cor.

Branco

Sem Título-12

Associação material: batismo, casamento, cisne, lírio, primeira-comunhão, neve, nuvens em tempo claro, areia clara.

Associação afetiva: ordem, simplicidade, limpeza, bem, pensamento, juventude, otimismo, modéstia, piedade, paz, pureza, inocência, dignidade, afirmação, despertar, alma, harmonia, estabilidade, divindade.

Preto

Associação material: sujeira, sombra, enterro, funeral, noite, carvão, morto, fim, coisas escondidas ― obscuras.

Associação afetiva: mal, miséria, pessimismo, tristeza, dor, temor, negação, melancolia, opressão, angústia, renúncia, intriga.

Cinza

Associação material: pó, chuva, ratos, neblina, máquinas, mar sob tempestade, cimento ― edificações.

Associação afetiva: tédio, tristeza, decadência, velhice, desânimo, seriedade, sabedoria, passado, pena, aborrecimentos, carência vital.

Vermelho

Associação material: guerra, cereja, sinal de parada, perigo, vida, fogo, chama, sangue, lábios, mulher, feridas, rochas vermelhas, conquista.

Associação afetiva: força, energia, movimento, esplendor, revolta, intensidade, coragem, calor, paixão, vulgaridade, poderio, glória, violência, ira, emoção, ação, extroversão, sensualidade.

Laranja

Associação material: competição, operacionalidade, locomoção, outono, laranja, pôr-do-sol, chama, calor, perigo, festa, raios solares.

Associação afetiva: desejo, dominação, força, luminosidade, euforia, energia, alegria, advertência, tentação, prazer, senso de humor.

Amarelo

Associação material: flores grandes, palha, luz, verão, calor da luz solar.

Associação afetiva: iluminação, conforto, alerta, espontaneidade, variabilidade, euforia, originalidade, idealismo, expectativa.

Verde

Associação material: umidade, frescor, bosques, águas claras, folhagem, tapete de jogos, mar, verão, planície, natureza.

Associação afetiva: bem-estar, paz, saúde, abundância, tranquilidade, natureza, equilíbrio, esperança, segurança, serenidade, juventude, crença, firmeza, liberalidade, descanso, ciúme, tolerância.

Azul

Associação material: montanhas longínquas, frio, mar, céu, gelo, feminilidade, águas tranquilas.

Associação afetiva: espaço, viagem, verdade, sentido, afeto, intelectualidade, paz, advertência, precaução, serenidade, infinito, meditação, confiança, amizade, amor, fidelidade, sentimento profundo.

Roxo

Associação material: janela, igreja, noite, aurora, sonho, mar profundo.

Associação afetiva: mistério, misticismo, espiritualidade, delicadeza, calma, fantasia, eletricidade, dignidade, justiça, egoísmo, grandeza.

Rosa

Associação material: brinquedos infantis, doces, flores, corações.

Associação afetiva: feminilidade, inocência, romantismo, proteção, inovação, diferenciação.

Castanho

Associação material: terra, águas lamacentas, outono, doença, sensualidade, desconforto.

Associação afetiva: pesar, melancolia, resistência, vigor.

Agora, para estabelecer a relação com as notas, apesar de a sinestesia variar, vou usar o teclado de Scriabin e as tabelas de Gatti.

Para analisar, escolhi apenas 3 notas: dó, mi e lá (para as tabelas de Gatti relaciono tudo com tonalidades maiores).

  • Dó – Vermelho

Associação afetiva do vermelho: força, energia, movimento, esplendor, revolta, intensidade, coragem, calor, paixão, vulgaridade, poderio, glória, violência, ira, emoção, ação, extroversão, sensualidade.

Associação de dó maior: rude, alegre, guerreiro

  • Mi – Branco

Associação afetiva: ordem, simplicidade, limpeza, bem, pensamento, juventude, otimismo, modéstia, piedade, paz, pureza, inocência, dignidade, afirmação, despertar, alma, harmonia, estabilidade, divindade.

Associação de mi maior: penetrante, alegre, grandioso, briguento, espalhafatoso

https://youtu.be/aMs0rNtBZJkhttps://youtu.be/TDZWLP7TgBMhttps://youtu.be/tJoDL1cSRjM

  • Lá – Verde

Associação afetiva: bem-estar, paz, saúde, abundância, tranquilidade, natureza, equilíbrio, esperança, segurança, serenidade, juventude, crença, firmeza, liberalidade, descanso, ciúme, tolerância.

Associação de lá maior: brilhante, alegre, rural

Apesar de não corresponderem todos, podemos sempre relacionar alguns aspetos. Claro que as correspondências cor-som variam, e acho que até a associação das tonalidades a certos sentimentos pode variar, no entanto sem sair muito das ideias principais. Penso que uma coisa que se pode denotar é que Charpentier adiciona sempre ou quase sempre 2 adjetivos para caracterizar a tonalidade, um deles que lhe dá mais significado do que apenas “alegre”, por exemplo. Ré maior é um bom exemplo: Marc-Antoine Charpentier, além do alegre, opinião dos outros teóricos, acrescenta “guerreiro”, e eu não podia concordar mais quando esta característica é incorporada e apresentada em peças como a Cavalgada das Valquírias, referida anteriormente por esta mesma razão.

E penso que é dado por aqui o fim do artigo, no entanto este assunto tem muito mais para explorar!

Assim sendo, ficam em baixo alguns PDF’s que usei como fontes que considero serem leituras interessantes (penso que todos os créditos se encontram nos próprios documentos):

E, para terminar, uma frase… também algo sinestésica:

“De ter esquecido a cor dos amores e o sabor dos ódios. Pensávamos que éramos imortais.”

Fernando Pessoa
Poeta Português

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Maria Inês Costa
Maria Inês Costa
24 de Fevereiro, 2022 11:25

Isto é muito mas muito interessante! Vou espreitar o PDF que sugeres, Mariana.
Artigo incrível!

Mariana
Mariana
Resposta a  Maria Inês Costa
25 de Fevereiro, 2022 19:52

A sério?! Que fixe!!
Fico muito feliz que tenhas gostado!! E espero que gostes do PDF!
Um beijinhos grande ❤

Mariana

Manuel Costa
Manuel Costa
25 de Fevereiro, 2022 12:55

Mas que grande artigo!! Um autêntico e completo ensaio sobre um tema deveras interessante.
Muitos parabéns Mariana por este grande e excelente trabalho. Tenho a certeza que é uma porta fundamental que se abre para quem quiser explorar esta apaixonante temática.

Mariana
Mariana
Resposta a  Manuel Costa
25 de Fevereiro, 2022 19:54

É mesmo uma apaixonante temática! Já para não fazer um artigo de mil metros de extensão é que pus os PDFs no fim, porque podia continuar por aí fora.
Considero, efetivamente, um tema curioso e que merece ser debatido.
Ainda bem que gostaste!!
Beijinhos ????

Maria Teresa Costa
Maria Teresa Costa
25 de Fevereiro, 2022 17:51

Parabéns Mariana pela pesquisa e excelelente texto que fizeste. És uma apaixonada não só pelo piano como por tudo o que se relaciona com a música. Tenho aprendido muito contigo. Obrigado.

Mariana
Mariana
Resposta a  Maria Teresa Costa
25 de Fevereiro, 2022 19:58

Que bom!!
Sinto que desde que começei este blog aumentei exponencialmente o meu conhecimento sobre música. E ainda que adore escrever, pesquisar, ouvir, e tudo mais, uma das coisas que me dá mais gosto em ter um blog é poder partilhar aquilo que faço, por isso fico muito, muito feliz de o poder fazer ❤
Obrigada e um beijinho grande!!

Mariana

Maria Manuel Costa
Maria Manuel Costa
25 de Fevereiro, 2022 20:43

Artigo muito completo e extremamente interessante. Numa palavra: Bravo!
Muitos e muitos Parabéns pelo trabalho de investigação musical 😉

Mariana
Mariana
Resposta a  Maria Manuel Costa
11 de Julho, 2022 11:58

Muito obrigada!!
É um tema super interessante para tratar e… foi dos mais desafiantes para pesquisar, mas também dos mais satisfatórios de analisar!
Muito obrigada pelo comentário ????

Mariana

F. Félix
F. Félix
9 de Julho, 2022 17:30

Brilhante, completo, gostoso de ler. Parabéns, Mariana!

Mariana
Mariana
Resposta a  F. Félix
11 de Julho, 2022 11:57

Muito obrigada ???? é uma temática extremamente interessante e eu queria mesmo tratá-la de maneira completa e interessante. Fico muito feliz que tenha gostado!!
Muito obrigada pelo comentário!

Mariana

Suris
Suris
20 de Julho, 2023 4:23

Estou com 46 anos e essa matéria simplesmente resolveu questões muito profundas de minha vida.
Muito obrigado!

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