Antes de começar, gostava de agradecer à pessoa que me fez perceber o verdadeiro génio (ofuscado) deste compositor e que me inspirou a escrever este artigo. Obrigada João. Nunca mais vou olhar para Czerny da mesma maneira 🙂
“Czerny é injustiçado.” – eis uma coisa que eu provavelmente não teria dito quando toquei um estudo dele no 1º grau.
Mas a verdade é que este compositor é, de facto, muitas vezes ignorado quando se trata de repertório com valor expressivo – injustamente, já que Czerny teve um papel relevante para o desenvolvimento do período Romântico, de forma que até Chopin foi seu adepto. Aluno de Beethoven e professor de Liszt, a vida deste compositor durou desde o fim do período Clássico até ao início do período Romântico, e bem que fez jus à época em que viveu – obras como os seus 8 noturnos ou os estudos de concerto demonstram que Carl Czerny não era só um compositor que metia escalas e arpejos numa partitura para os alunos dele.
Aliás, uma das razões principais pela qual este compositor é muitas vezes negligenciado no que toca a repertório “sério” é o seu legado no que toca não à composição de música, mas ao ensino da música – os métodos de Czerny foram completamente inovadores para a época, e os enormes progressos na técnica pianística que a ele se devem são a base da técnica para este instrumento que conhecemos hoje – tanto que ele é hoje apelidado de Pai da Técnica Pianística Moderna – e claro que não podemos contornar esse legado, mas também não devíamos contornar o outro lado da moeda na obra deste compositor.
Como Czerny foi verdadeiramente revolucionário neste aspeto, este enorme legado que nos deixou em termos de técnica acabou por ofuscar as suas outras maravilhosas composições, fora dos estudos que concebia para os seus alunos – apesar de a obra de Czerny estar a ser redescoberta e em busca de valorização, tendo ganho várias estreias mundiais nas últimas décadas com músicos como Grzegorz Nowak e Anton Kuerti.
É por isso que o artigo de hoje se foca neste compositor, e é por isso que hoje vou falar sobre o valor expressivo das obras “esquecidas” de Czerny, do porquê de ser tão importante no desenvolvimento da técnica para piano, da sua organização de composições em quatro categorias, e também de uma seleção de peças que demonstram o seu verdadeiro valor como compositor.
Para começar, eu gostava de falar de uma semelhança que une personalidades como Claudio Arrau, Alfred Brendel, Sergei Rachmaninoff, Paul Badura-Skoda, Arthur Rubinstein, Edwin Fischer, Daniel Barenboim, Sergei Prokofiev, entre tantos outros – sem ser o facto de serem todos pianistas.
De uma maneira ou de outra, todos estes vêm de uma linhagem de professores que, um dia, tiveram como professor Carl Czerny.
Desde Liszt a Copland, muitos foram os pianistas que passaram o legado de Czerny às próximas gerações, e acho que podemos afirmar que Czerny treinou bastantes professsores reconhecidos para passarem o seu legado – já para não falar dos seus pupilos especiais, grandes pianistas da época como Theodor Döhler e Sigismond Thalberg.
Fica aqui um esquema certamente não completo, mas com parte da grande linhagem de pianistas que usufruíram dos métodos de Czerny:
São bastantes nomes bons no currículo de Czerny, com os seus alunos a passarem o seu legado até aos grandes pianistas que conhecemos hoje, mas este compositor não fica por aí.
O próprio Czerny dividia a sua obra em quatro categorias:
1 – Estudos e exercícios
2 – Peças fáceis para estudantes
3 – Peças brilhantes para concerto
4 – Música séria
Esta música séria e peças brilhantes para concerto incluem sinfonias, noturnos, massas, quartetos de cordas, concertos, e tantas outras peças que facilmente se equiparam à música de outros compositores que, porventura, terão ficado mais conhecidos por esta mesma “música séria”.
Nas palavras de Stravinsky, “quanto a Czerny, tenho apreciado mais o músico de sangue puro nele do que o notável pedagogo.”
Peças como estas são exemplos do grande génio por detrás de todos os estudos para fins puramente pedagógicos. Czerny é também importante nesta vertente do período “primitivo” Romântico.
Isto porque Czerny nasceu em 1791, ou seja, a sua música estaria situada entre o fim do período clássico e o início do período romântico, e, por consequência, Czerny viveria toda esta viragem de estilo – e, convenhamos, é difícil ficar alheio a estas coisas quando se tem como professor a figura mais proeminente nesta transição (explico como se deu a transição do Clássico para o Romântico neste artigo).
Desde tenra idade que este compositor entrou em contacto com o “criador principal” do período Romântico, – Ludwig van Beethoven – tendo até vindo a estrear em Viena o seu conhecidíssimo Concerto para Piano nº 5 “Imperador”.
Czerny tinha dez anos quando Beethoven o aceitou como aluno, este último tendo ficado extremamente impressionado com a apresentação do seu futuro pupilo da sua Sonata Patética.
Foi, no entanto, três anos antes que começou a composição de obras por parte de Czerny. O seu op. 1, o primeiro de 861 obras, seria publicado em 1824 (o compositor teria então 33 anos), e em 1840 escolheria dedicar-se exclusivamente à composição, compondo tanto os famosos livros de estudos e exercícios que conhecemos hoje como aberturas, sinfonias, concertos, entre tantos outros.
Assim, a obra “séria” de Czerny pode ser considerada como a fase entre o seu professor, Beethoven, e o seu aluno, Liszt – especialmente as suas 11 sonatas, que fazem uso não só da forma sonata tradicional como de elementos do período Barroco como o fugato e formas livres de fantasia.
Levemos por exemplo a sua sonata op. 268, a “Grande sonata de estudo de digitação para alcançar a habilidade superior do mecanismo em várias novas formas de passagens” (ora bem… acho que vou só chamar-lhe sonata nº 10):
Este, para mim, é um exemplo bastante curioso do valor das composições de Czerny.
Esta peça que era suposto ser um estudo acabou por ser mais longa do que algumas das sonatas de Beethoven, para além de demonstrar as capacidades do compositor no seu melhor. Não nos esqueçamos que o próprio Franz Liszt, aluno de Czerny, lhe fez uma dedicatória nos seus estudos transcendentais e costumava tocar a Sonata nº 1 de Czerny como encore nos seus concertos, e chegou a escrever uma carta em que elogiava bastante a sonata e afirmava querer mais trabalhos de Czerny assim.
Começando logo em grande, com uma entrada digna da Sonata Waldstein, nota-se bem neste allegro con spirito que Czerny aprendeu alguma coisa das sonatas do seu mestre (aliás, para escrever um livro inteiro sobre a execução de cada uma das sonatas de Beethoven é porque aprendeu mesmo).
A peça continua num adagio expressivo, com um tema que bem nos pode fazer lembrar os grandes mestres românticos, especialmente um certo sabor a Chopin (que também vai ser influenciado por Czerny).
O scherzo no terceiro movimento é claramente de caráter mais ligeiro e informal, como típico da forma escolhida, que em italiano significa “piada” e é usado para substituir o minueto numa peça de maior duração como uma sonata ou uma sinfonia – mais uma vez notando-se a influência de Beethoven, que chegou a incorporar o scherzo nas suas sinfonias.
O quarto movimento corresponde a um allegro con fuoco e mostra-nos mais uma vez o poder e consistência a nível sonoro impecáveis desta sonata, que me atrevo a comparar a uma sonata de Mozart, ou até Beethoven.
Globalmente, esta sonata demonstra-se um trabalho digno de reconhecimento – e, digo até, digno do aplauso do Sr. Liszt.
Mas agora partimos para uma peça ainda mais expressiva de Czerny, o seu Noturno nº 2:
Talvez um facto interessante de relembrar quando nos referimos aos Noturnos de Czerny (até é estranho para mim escrever Czerny em vez de Chopin) é que um Frédéric Chopin de 18 anos chegou a conhecer Czerny em Viena, e conjetura-se que possa ou não ter sido influenciado pelos seus noturnos.
A verdade é que esta hipótese não é nada descabida: a fluidez rítmica e a personalidade íntima presentes nos noturnos de Chopin podem muito bem ser encontrados em noturnos de Czerny, então considera-se que Chopin pode ter idealizado estas características dos noturnos de Czerny, incluindo este nº 2, para os seus próprios (e, se isto for verdade, temos bastante que agradecer a Czerny pelo marco no repertório pianístico importantíssimo que são os 21 preciosos noturnos de Chopin).
Para mim algo sugestivo de uma mistura entre o Noturno op. 9 nº 2 e o op. 27 nº 2 de Chopin, o Noturno op. 368 nº 2 de Czerny reflete um compositor na vanguarda do seu tempo e uma obra digna de estar no repertório standard para piano.
(Uma playlist com todos os noturnos de Czerny fica aqui)
Outro aspeto ainda relacionado com Chopin seria os estudos: o facto de Czerny ter sonatas, noturnos e outras obras mais interessantes do que os estudos dele que se aprendem na escola não invalida o facto de esses estudos não serem tão musicalmente interessantes quanto os de Chopin, Liszt ou Rachmaninoff.
Isto é porque estes estudos de Czerny como a Escola da Velocidade ou a Arte da Destreza dos Dedos são meramente exercícios, a maior parte deles tão importantes musicalmente como uma simples escala (apesar de haver exceções).
O equivalente aos estudos de Chopin de Czerny não são estes estudos, mas sim os seus estudos de concerto (que são 24, como os de Chopin), que, ao contrário dos seus estudos estritamente pedagógicos, apresentam uma musicalidade mais interessante e são mais prazerosos de tocar – e Czerny, apesar de ser dos primeiros a utilizar a palavra estudo, não foi o último a distinguir os seus estudos dos seus estudos de concerto: o seu aluno Franz Liszt faria o mesmo, distinguindo os seus estudos (op. 1) não só dos seus estudos de concerto como dos estudos transcendentais e dos grandes estudos de Paganini.
Mas então se ainda por cima há estudos de Czerny mais musicalmente interessantes, porque é que toda a gente continua a aprender os op. 299 ou 740? Porque é que os métodos de Czerny, depois de tantos séculos de evolução, continuam a ser usados como desenvolvimento técnico no ensino do Piano?
Ao fim e ao cabo, qual foi o verdadeiro impacto dos métodos de Czerny no desenvolvimento da técnica pianística?
Quer dizer, por alguma coisa Czerny há de ter o apelido de pai da técnica pianística moderna.
Eu diria que uma das razões mais importantes pela qual se tocam os estudos de Czerny é porque estes estudos nos fazem praticar diferentes técnicas para piano nunca antes do seu tempo estudadas em pormenor – terceiras dobradas, controlo de notas presas, peso de braços, movimento do pulso, etc. – e, enquanto que se possa argumentar que estas técnicas também podem ser estudadas a partir dos estudos de Heller, Cramer, ou outros compositores, outra coisa muito importante que Czerny nos oferece é um leque muito variado de técnicas e também de níveis de dificuldade, acompanhando o desenvolvimento do aluno desde os primeiros compassos até aos grandes estudos de Chopin, Liszt e Rachmaninoff.
Para além disso, estudos como os de Czerny ajudam pianistas a atingir habilidades técnicas de que precisam para melhor interpretar outras peças – por exemplo, de que é que me adianta tocar o segundo andamento da Sonata Patética de Beethoven com imensa musicalidade se não conseguir segurar as notas presas na mão esquerda? Vai-se a ouvir e ninguém se concentra na expressividade, mas sim no “que raio de mão esquerda é esta?”.
E qual seria a solução? Um estudo de Czerny para as notas presas.
Czerny considerava que a musicalidade e a técnica devem ser concebidas em colaboração, e os seus estudos servem para proporcionar aos jovens pianistas as ferramentas de que precisam para interpretarem tudo o que quiserem, sem ter dificuldades técnicas – com um leque completo de técnicas perfeitamente aperfeiçoadas, o pianista terá, por fim, a possibilidade de as usar para todos os fins interpretativos que desejar, já para não falar da obtenção de um completo e valioso domínio técnico.
“Czerny acreditava que o desenvolvimento dos dedos deve ser construído exclusivamente na ginástica mecânica. O seu método era de repetição sem fim, de bicadas constantes num ponto… Czerny acreditava em primeiro desenvolver a técnica independentemente da música, depois fazer com que essa técnica eventualmente servisse à realização de objetivos artísticos. Pela primeira vez, a separação total da mecânica e da música foi pronunciada de forma clara e franca.”, explica George Kochevitsky.
O que me leva a outro ponto: os estudos de Czerny são muitas vezes estereotipados como “mecânicos”, “superficiais” ou até mesmo “aborrecidos” (há dois meses atrás eu também achava o mesmo, e até percebo o porquê), mas porque não desconstruir isto um bocadinho?
Por isso é que, aplicando este sentido de técnica e musicalidade em colaboração, porque não fazer música com os estudos de Czerny? Adicionar fraseado, um tom mais colorido, mais fluidez… o céu é o limite.
Até pode ser só um monte de arpejos, mas pensar na peça como tal não vai ajudar nada – mais vale tentar pegar no estudo e tentar torná-lo mais interessante.
E a última razão que trago para este artigo é o facto de os estudos de Czerny, no fim de contas, serem um ponto de passagem importante na aprendizagem de um pianista – antes de tocar os estudos de Moszkowski, Godowsky, Liszt, Chopin, Rachmaninoff e dos outros grandes gigantes da literatura para piano, é importante ter elaborado conhecimentos técnicos e musicais até lá chegar, e os estudos de Czerny podem ser a ponte que nos leva até estes estudos de dificuldade mais elevada.
Porque afinal quem é que toca o Feux Follets ou o Winter Wind sem uma boa dose de estudo puramente técnico primeiro?
Voltando à música séria, é com muito prazer que agora falo sobre os esforços que têm sido feitos para gerar um maior reconhecimento quanto a este compositor recentemente – desde a morte de Czerny até ao século 20, o seu trabalho foi percebido principalmente de forma desfavorável, no entanto esta perspetiva sobre a obra de Czerny tem vindo a alterar-se devido ao trabalho de vários artistas destinado à publicitação da obra séria deste compositor.
“Seria difícil localizar uma falha de imaginação maior que a de Czerny”, escreveu Robert Schumann na New Musical Gazette em referência ao Op. 424.
No entanto, vários músicos proeminentes o iriam contradizer, como Brahms e Stravinsky. Aliás, numa carta a Clara Schumann, Brahms afirmaria que “na verdade, eu acho que as pessoas hoje deviam ter mais respeito por este excelente homem”.
Tudo isto culminaria no Carl Czerny Music Festival and International Symposium, realizado em Junho de 2002, sob a direção artística de Anton Kuerti, que até aos dias de hoje mantém esforços para popularizar a obra deste compositor. Consistindo em variadas conferências sobre os diferentes aspetos da vida pessoal e musical do compositor, e ainda várias estreias mundiais de obras de Czerny nunca antes ouvidas, cujas partituras eram mantidas pela Sociedade dos Amigos da Música de Viena, – acredita-se que cerca de 75% das composições manuscritas de Czerny jamais foram publicadas, o que, convenhamos, é uma pena – o Festival tem contribuído significativamente para a divulgação da obra deste compositor.
Este festival fez com que a obra de Czerny deixasse de ser vista como puramente didática, e correntemente as perspetivas que reinavam sobre este compositor até ao século 20 estão a ser completamente revolucionadas.
Como viria a afirmar Leon Botstein, “Há poucos casos de comparável influência histórica à grande tradição clássica, e tal negligência”.
Várias obras de Czerny têm vindo a ganhar as suas estreias mundiais desde as últimas décadas graças a artistas como Anton Kuerti, Isabelle Oehmichen, Martin Jones e Grzegorz Nowak, e obras como os seus Noturnos, Sonatas, Sinfonias nº 2 e 6, entre outras, têm vindo a ganhar gravações de referência para quem as quiser interpretar.
Então, felizmente, agora já temos mais conhecimento, gravações e partituras das obras desde injustamente menosprezado compositor, e por consequência mais para nos fazer perceber o génio por detrás dos exercícios pedagógicos – não Czerny o professor, mas Czerny o pianista, o orquestrador, o compositor – cuja música não didática pode ter sido esquecida, mas nunca devia ter sido ignorada.
Mais algumas das suas peças:
https://youtu.be/jAelyzGB1o
Partituras para piano (IMSLP):
- Noturnos
- Grandes Estudos de Salão (Estudos de Concerto)
- Toccata, op. 92
- 8 Morceaux pour Salon, nº 1: Chanson sans paroles
- Sonata nº 10 (não é a única sonata de Czerny com a partitura, mas decidi não pôr as 11 sonatas porque estão todas listadas no link a seguir a este)
- Todas as obras de Czerny (algumas podem não ter partitura)
“Aos onze anos, concebi um desejo ardente de conhecer o grande pedagogo Carl Czerny… o meu pai teve aulas com o renomeado professor, de modo que eu estava bem preparado para tirar proveito imediato ds sua valiosa instrução… tem sido moda subestimar os serviços que este grande homem prestou ao pianismo; mas temos apenas que apontar para a lista de virtuosos ilustres que chegaram até ele como uma fonte – Liszt, Thalberg, Döhler, Kullak… os seus estudos são muito valiosos. Ele pode muito bem ser chamado de Pai dos Virtuosos… a sua maneira de ensinar era um pouco a de um maestro. Ele dava as suas aulas em pé, indicando os diferentes tons de andamento e colorindo por gestos. Czerny insistia principalmente na precisão, brilho e efeitos pianísticos.”
Theodor Leschetizky
Pianista, compositor, professor