“Se a Arte é como decoramos o espaço, a Música deve ser como decoramos o tempo.”
Eis uma frase com a qual já me cruzei várias vezes. Decerto não terei sido a única.
Agora o que poderá ser algo mais remoto é que esta frase faz-me pensar na música de vários compositores – mas, especialmente, na do compositor checo-austríaco Gustav Mahler.
Pois se a Música decora o tempo, decora-o de maneiras que não podemos ver (a menos que seja ver dentro da nossa cabeça, claro). Decora o que nos rodeia, o ambiente em que nos encontramos, abraça-nos sem que o sintamos.
É por esta razão que quando penso nisto, penso em Mahler. Que outro compositor teria música mais envolvente, mais intensa, mais dinâmica e multidimensional do que as sinfonias deste compositor?
A meu ver, isto vem de uma maneira muito simples, que pode ser muito simplesmente explicada pelas palavras do próprio compositor: “a sinfonia deve ser como o Mundo. Deve abranger tudo”.
E a verdade é que a principal razão pela qual estou a escrever este artigo é porque as sinfonias de Mahler, as suas grandes obras-primas, nos transportam para o seu próprio Mundo, criam-no à nossa volta como se ele lá estivesse desde sempre, como se estivesse à espera de nos ser mostrado e como se a Música tivesse a chave para o fazer.
Porque todo este Mundo escrito em simples notas numa pauta era uma decoração, mas não do espaço. Do tempo.
Isto porque, para criar todos os seus mundos, Mahler puxou tudo o que conseguiu até ao limite: tamanho da orquestra, expressão emocional, dissonância, dinâmica, duração… todas as ferramentas que ajudassem a criar uma obra verdadeiramente transcendental.
Usando todos estes atributos de forma profundamente expressiva, este compositor escreveu obras de uma complexidade e poder inigualáveis – e é por isso que o artigo de hoje é dedicado exclusivamente a ele.
Para além de explorar a vida cheia de peripécias deste compositor, investigar-se-ão ainda as suas complexas, mas fascinantes sinfonias, o seu legado como compositor e maestro, as forças que o dividiam e que explicam a sua Música, a Canção para a Terra, e, finalmente, a maneira incrível como Mahler usou tudo o que sabia, tudo o que experienciara, tudo o que vivera, para nos trazer peças originais, autênticas e verdadeiramente incomparáveis.
…Pois. Eu usei a palavra “autêntica”. Estou consciente de que esta não seria primeira palavra que se associa a Mahler, ou pelo menos não a palavra que todos usam para o descrever.
Ao longo dos anos, a sua obra tem gerado opiniões mistas (e isso também é algo que eu quero esclarecer hoje), precisamente por uma das forças que o dividiam: a de ser compositor e maestro ao mesmo tempo.
Mahler foi, para muitos, um dos melhores maestros de todos os tempos. A maneira como regia mais com os olhos do que com as mãos, como prestava atenção ao mais ínfimo detalhe que quisesse alterar, como se focava com tanta atenção para preservar todas as nuances nas frases, como dirigia com a imagem do compositor em mente… tudo isto levou ao fascínio e surpresa do público com o tamanho génio que Mahler demostrava quando conduzia uma orquestra.
Mas, claro, surgiria depois uma assunção não tão positiva: Mahler pode ser um maestro sublime, mas não tão genial enquanto compositor.
E isto é algo que se pode desconstruir se olharmos para o seu percurso artístico.
No entanto, visto pelo prisma de Mahler como maestro, tudo corria pelo melhor, certo?
Mahler corria mundo a tocar com as melhores orquestras, toda a gente apreciava as suas capacidades descomunais para reger, todas as orquestras adoravam trabalhar com ele e… ainda tinha tempo de sobra para compor? E eu aqui a queixar-me?
Como é que podia ficar melhor?
Poderia ficar melhor se… não houvessem opiniões mistas sobre Mahler como compositor. Pois, esse prisma é que é mais chato.
Enquanto extremamente renomeado como maestro, Mahler foi e é alvo de fortes críticas quando nos referimos às suas obras – sendo a principal delas uma coisa muito triste, mas que na obra de Mahler, para mim, não se aplica: a de que ele copiava a tradição ocidental que tanto adorava.
No entanto, ao olhar para a obra de Mahler, temos que ter em conta todas as suas faces com que ele se debatia – o balanço entre maestro e compositor, entre alegria e tormento, entre Ocidental e Oriental, até.
É por isso que todo este artigo vai procurar desconstruir um preconceito em relação à obra de Mahler – o de que a obra de Mahler é uma mera cópia dos compositores que regia.
Não é segredo para ninguém que Mahler adorava os seus queridos compositores europeus – é muito importante realçar o facto de que este compositor foi um compositor checo-austríaco de origem judaica, mas fazia parte de uma minoria alemã que vivia na antiga Boémia.
Assim, Mahler foi sempre divido entre Ocidente e Oriente. Adorava Mozart, Schubert e Wagner, mestres da tradição ocidental, mas também adorava etnomusicologia, etnomusicologia chinesa em particular, estudava novos timbres, criava detalhes inovadores e indubitavelmente especiais, mas por onde ir? Que caminho escolher?
Foi assim que Mahler viveu durante toda a sua vida: dividido.
Divido entre compositor e intérprete, entre alegre e atormentado, entre ocidental e oriental, sempre sozinho.
No entanto, único. Único num Mundo que parecia ter tanto para oferecer, mas que nada lhe dava a ele, pois todo o chão que Mahler pisava fazia-o sentir-se um intruso.
Mahler tornou-se dividido mesmo antes de nascer – o seu pai era violento e teimoso, a sua mãe a candura em pessoa. O pai queria sempre mais, a mãe contentava-se com o que tinha. Diferentes como o fogo e a água, mas não fossem eles e havia menos um génio nas páginas da História.
Uma alma desejosa de alegria, mas cheia de sofrimentos, chegou a converter-se ao Cristianismo pela promessa de redenção, de que tanto necessitava para aliviar tudo por que passou – desde a sua infância que o seu psicológico foi afetado pelo lar em que vivia, particularmente por causa das agressões à mãe por parte do pai a que ele teve que assistir.
No entanto, não ficaria por aí – a família Mahler, ao mudar-se para a Morávia quando Gustav tinha ainda poucos meses de idade, arranjou ao filho um bilhete só de ida para a cidade de Jihlava, onde o exército austríaco era presença constante – e onde o compositor habitaria cerca de 10 anos.
Assim, Gustav foi desde cedo marcado pelas marchas e toques de soldado que ouvia, chegando até a fazer uso destes mesmos nas suas composições.
Não admirava que Mahler fosse, também, dividido nas suas composições – aliás, isto é algo que nós podemos observar nas suas sinfonias, e que eu acho que explica a absoluta supremacia desta forma musical no seu repertório mais interpretado: Mahler tinha tanta afeição pela orquestra como pela voz.
E isto… bem, isto soa estúpido, porque Mahler nunca sequer escreveu uma ópera, e a sua obra para orquestra é muito mais significativa do que a sua obra para voz.
Mas não nos esqueçamos da frase de Mahler, que é muito importante para entender a sua obra: a sinfonia deve abranger tudo.
E abrangia mesmo tudo: nas suas 9 sinfonias antes de Das Lied von Der Erde (Canção da Terra), quatro delas possuem vozes. E duas delas, mesmo coros inteiros.
Já não bastava os milhentos músicos na orquestra, não é?
No entanto, não transformemos os milhentos músicos em algo exclusivo, pois Mahler gostava de exagerar – tudo em Mahler é o epítomo, desde as dinâmicas mais piano até às mais fortes, desde a tradição clássica até ao presságio do atonalismo, e até na orquestra enorme (e quando eu digo enorme, é mesmo enorme).
Isto porque Mahler era um exímio orquestrador – ou melhor, era um exímio combinador de timbres.
Colocando a orquestra ao serviço de uma expressividade cada vez mais profunda, Mahler era um verdadeiro mestre a combinar instrumentos, que originavam texturas extremamente criativas.
Isto demonstra, mais uma vez, uma divisão na maneira como Mahler tratava a orquestra: a maneira grandiosa e a maneira suave.
Ora, isto pode também chocar com a crença de que Mahler foi um compositor para orquestras monstruosamente grandes – o que faz sentido, porque Gustav Mahler usou para as suas obras os maiores conjuntos orquestrais na História (prometo que isto vai fazer sentido).
Enquanto isto nos pode fazer esperar sons nobres e poderosos, o exato contrário acontece não tão poucas vezes assim – usando pouquíssimos instrumentos, tal como música de câmara, mas criando sons únicos e verdadeiramente magníficos na sua essência.
No entanto, Mahler nunca foi muito de música de câmara, tal como acontece com a ópera. Trios, quartetos, nem mesmo uma sonata para violino podem ser encontrados no seu repertório.
Outro exemplo, um exemplo inabitual, até, das forças que sempre o dividiam.
Mas, mais uma vez, é a sinfonia que vem como um todo.
Podemos não ter música de câmara, mas esta aparece dentro das sinfonias. Podemos não ter ópera, mas as sinfonias soam a operático.
Pois a sinfonia engloba tudo. Incluindo as forças que o dividem.
Foi com este mote que Mahler juntou, também, etnomusicologia com a tradição Ocidental, modernismo com a tradição Ocidental até. Um enorme fã de música eslava, judia e chinesa, não foram poucas as vezes em que Mahler utilizou todas estas influências no seu grandioso pot-pourri de mundos sinfónicos – mas não se limitou só a isso.
Enquanto Mahler muitas vezes retirou influência dos seus amados compositores ocidentais, desde Mozart a Wagner, não é segredo nenhum que, muitas vezes, a sua música chegou a pressagiar bastante a dos compositores modernistas que lhe sucederiam, quer Britten, quer Schoenberg, quer Shostakovich – e ênfase especial no Shostakovich.
E este ênfase especial no Shostakovich precisamente por este lado funesto que Mahler tem, por vezes, nas suas obras – enquanto que existem variadíssimas passagens de caráter leve, natural, e gaiato na obra de Mahler, esta volta a ser uma divisão: aquela em que Mahler gostava tanto da infância e da Natureza e que queria desesperadamente, que buscava constantemente a felicidade, mas que não a conseguia. Mahler não conseguia, por muito que quisesse, remediar toda a sua infelicidade, especialmente por certos preconceitos da época (o que incluía o facto de ele ser judeu).
Assim, surgem na sua obra passagens tormentosas, amarguradas, e assim surge a tal semelhança a Shostakovich – pois, tal como ele, Mahler transformava o seu sofrimento em música.
E esta dimensão transforma-se num dos pequenos segredos de Mahler que explicam a sua música – durante toda a vida dele, ele quis reencontrar a sua infância, com toda a sua inocência quintessencial, onde tudo era tão puro, de tal maneira feérico que às vezes só se tem vontade de chorar, porque é tudo tão bonito.
Mahler enche as suas obras disso, de Natureza, de Primavera, de floresta, de pássaros, de uma beleza infantil e acrata – e assim temos um homem formado, sofisticado, sábio, com uma família formada e um coração cheio que batalhas, que apenas queria ser uma criança outra vez.
Agora que já explorámos melhor este conceito de sinfonia como união, continuemos mais um pouco com a história do compositor, antes de chegarmos à Canção da Terra (estou aqui em pulguinhas para falar dela… e acho que vai dar para perceber porquê).
Mahler viajou por todo o mundo com as mais variadas orquestras, impressionou muitos, ofendeu muitos, também, e… pronto. Chegou a uma altura que já tinha a carreira formada.
E agora compor?
Pois é. Compor tinha virado assim… um pouco como um passatempo.
Mas isto assim não pode ser. E Mahler sabia-o.
Então, uns anos mais tarde, estava ele na belíssima cidade de Viena, e, de repente, tem um dos seus períodos mais prolíficos – compôs cinco sinfonias de uma vez (a oitava sinfonia sendo composta em 8 semanas tremendamente furiosas), imensos lieds, incluindo os Rückert-lieder e as Canções Sobre a Morte de Crianças, e as suas obras começaram a ser interpretadas mais frequentemente. Pronto… a vida corria melhor, hã?
E, em cima disto tudo, conheceu, finalmente, Alma Schindler, que viria a tornar-se Alma Mahler. E a verdade é que ninguém gostava muito deles como casal – por um lado, porque viam Gustav como um “judeu raquítico degenerado” (haters, não é mesmo?), e por outro lado, porque viam Alma como uma rapariga desleal, e que tinha demasiado prazer em ver pessoas apaixonarem-se por ela.
A verdade é que acabou, realmente, por não correr lá muito bem – ou, pelo menos, assim foi no princípio. Mahler, no seu estilo temperamental e autoritário habitual, proibiu a mulher de compor, pois acreditava que só podia haver um compositor na família, e que ela tinha que ser uma mulherzinha querida, fofa e compreensiva.
Pronto, mas não vamos já passar um atestado de estupidez ao Mahler, sim? A história continua.
Alma, revoltada, tornou-se amante do arquiteto Walter Gropius, um caso que seria descoberto por Gustav. Aí, ele procurou os conselhos do psicanalista Sigmund Freud, que atestou que a causa desta revolta de Alma foi, precisamente, a de Mahler a ter proibido de compor (era um bocado óbvio, mas pronto).
Então, Mahler começou a encorajá-la a compor de novo, até editando, orquestrando e promovendo alguns dos seus trabalhos. As coisas endireitaram-se.
Quer dizer, o caso com Walter Gropius continuou na mesma, mas… enfim. Ao menos Mahler tentou.
E, no meio disto tudo, surge, finalmente, a obra de que eu queria tanto falar, que vai marcar profundamente o seu último período – Das Lied von der Erde, ou Canção da Terra.
Isto porque a obra de Mahler é dividida em quatro períodos, mas de uma forma que eu acho bastante análoga aos três períodos de Beethoven: o primeiro, que representa o início da carreira, em que ele via o que é que se fazia na altura e explorava um bocadinho aquilo que conhecia (que, no caso de Mahler, compreende os dois primeiros períodos, o início e o período Wunderhorn), o segundo, um período extremamente prolífico, que, no caso de Mahler, foi quando ele compôs as cinco sinfonias e imensos lieds, e, finalmente, o terceiro, em que ele descobre definitivamente a sua voz, e cria a sua obra-prima.
E esta peça, que, sim, eu diria que é a tal “obra-prima” do terceiro período, é importante para destruir aquela assunção a que eu me referi no início.
Mahler não é uma cópia da tradição clássica ocidental, e esta sinfonia prova-o.
Das Lied von der Erde tem, mais uma vez, todos os extremos – a orquestração enorme e depois reduzida, a mistura entre a tradição ocidental e a etnomusicologia, só que algo muda.
Isto porque tem, ainda, uma quantidade enorme de influência chinesa – incluindo harpas, bandolim e celesta na orquestração, para criar um som delicado, relembrando assim música oriental.
Assim, na última canção da sinfonia, a letra provém de um poema Chinês antigo, um poema de alguém que está a dizer adeus ao mundo – “este belo mundo floresce uma e outra vez, todas as primaveras, para sempre”.
Da maneira que eu vejo esta situação, Mahler podia ter mesmo esta despedida como a sua própria, e isso assustava-o, dava-lhe vontade de agir.
Mahler descobriria que o seu coração possuía um defeito, que praticamente o podia matar, mais cedo ou mais tarde. E ele não sabia quando, apesar de não manifestar muita preocupação com a sua condição.
Mas sabia que qualquer dia podia ser o seu último, e que precisava de criar algo de seu antes de morrer. Assim, esta despedida não é só a sua possível despedida, mas a despedida da música clássica ocidental, pois Mahler sabe que agora precisa de começar um novo tipo de música, o seu tipo de música, e esta sinfonia é o início, o presságio deste novo caminho – daí esta sinfonia estar inserida nos primórdios do seu terceiro período, que se prolongaria até à sua morte.
E, nesta sinfonia, Mahler sabe aquilo que tem que resolver – então ele diz adeus a todo o Schubert, todo o Wagner onde se tinha inspirado para as suas obras anteriores, mas de maneira triste, sem vontade de o fazer, porque ama tanto esta música. Então, pronuncia a palavra ewig, para sempre, uma e outra vez, pois reconhece que a sua voz como compositor vai mudar, tem que mudar, mas vai sempre apreciar a boa, velha, música alemã.
E é a seguir que a música acaba, com esta palavra, numa atmosfera de magia, de fantasia, de infinito, e envolve-nos neste ciclo que nunca para.
E aí, sim, sabemos que algo vai mudar. Não agora, mas no que está para vir.
Gustav Mahler cumpriu a sua promessa. Criou, e criou, inovou, e inovou, até ao dia em que se foi.
Será que encontrou a sua beleza infantil? Isso já não sei, mas é certo que a procurou. E partilhou com o público tudo o que tinha de si, tudo o que queria, tudo o que vivera. Na sinfonia, a união.
Por isso… não admira que a sua obra seja tão maravilhosa.
“O que vamos fazer é tocar para vocês a última parte da última peça da sua grande sinfonia, A Canção da Terra, parte da qual ouvimos antes, que é um dos finais mais bonitos que qualquer peça musical já teve. Agora, algumas pessoas ficaram surpresas quando eu disse que ia tocar isso hoje. Eles disseram: “O quê? Vais tocar aquela música longa, lenta e intelectual para os jovens? És louco – eles vão ficar inquietos e barulhentos. Eles não vão entender. É muito intelectual. E nem sequer termina com uma finalização estrondosa. Morre silenciosamente. Ninguém vai bater palmas.” Bem, eu conheço os meus jovens, e não tenho medo de tocar esta obra para vocês. […] finalmente a música extingue-se nesta palavra [ewig], sem parecer terminar. É quase como magia, este final maravilhoso. Realmente tem-se a sensação de que continua indefinidamente, para sempre, mesmo depois de parar. E se esta quietude mágica no final fá-lo sentir vontade de não bater palmas, simplesmente não bata. Eu entenderei.”
Leonard Bernstein
Compositor, maestro, pianista