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Para começar este artigo, porventura, da pior maneira possível, um dos meus primeiros grandes ídolos no Jazz foi Brad Mehldau.

Tive a sorte de ouvir pela primeira vez a Golden Slumbers interpretada pelas suas mãos, ou talvez não tivesse ganho a minha panca infinita e interminável pelos The Beatles. E, claro, tive a sorte de, antes de tudo, ter um professor que me apresentasse a sua obra.

Foi aliás um fenómeno engraçado conhecer Brad Mehldau, porque nunca tinha visto tal nome na vida e de repente comecei a vê-lo em todo o lado. Ou pelo menos para mim foi assim, provavelmente porque aqui a génia precisou de um momento raro de inspiração para perceber que o apelido do homem se escrevia Mehldau e não Meldow.

Mas o sítio aonde eu quero chegar é que quem fala de Brad Mehldau fala, também, do Brad Mehldau Trio, muito provavelmente devido ao seu incontornável conjunto de obras (dividido em volumes) neste formato de ensemble, A Arte do Trio. E é, precisamente, este Brad Mehldau Trio que possui como baterista um dos melhores deste instrumento da era contemporânea, e que tivemos a maravilhosa oportunidade de ouvir tocar: Jeff Ballard.

Tenho que dizer que logo que pesquisei sobre este artista e vi a colaboração de já duas décadas com este trio, fiquei excitadíssima. Mas o trabalho de Jeff Ballard não fica, nem de perto nem de longe, por aqui: para além do famoso Brad Mehldau Trio, Ballard traz, também, no seu arsenal de experiências colaborações com Chick Corea, um dos maiores nomes no piano jazz da era pós John Coltrane, e mais de uma década de tours como músico integrante da Big Band de Ray Charles, acabando por tocar com este músico durante esse período por cerca de 8 a 9 meses por ano – e vamos ser sinceros, se Brad Mehldau é famoso (e bem merece o estatuto que tem, e muito mais) então Ray Charles é no mínimo famosíssimo. Não é necessário ficarmo-nos por aqui, no entanto. Temos ainda trabalho com o contrabaixista jazz Avishai Cohen, por exemplo, e, é claro, os seus discos a solo.

Mas o que retirei do concerto deste baterista com o excelente Combo Jazz da Universidade de Aveiro, foi que, muito sinceramente, a sua arte não depende nem se limita a associar-se a nenhum destes artistas.

Jeff Ballard e o Combo de Jazz da UA no Cineteatro Alba. © Alex Sousa (Instagram: @alexsousaph)

Creio que a primeira característica que nos salta à vista nas duas primeiras interpretações, de composições saídas da caneta de alunos da mesma UA, é uma linguagem harmónica extremamente livre e ousada – quero eu dizer, a música que ouvimos surpreende-nos por mudar e alternar entre diversos modos, acordes com extensões, escalas alteradas ou até mesmo escalas exóticas numa questão de apenas compassos – o que é algo que traz à música um caráter vivo e intensamente colorido, e lhe traz um caráter intencionalmente dinâmico e ousado.

Isto é algo que realmente me impressiona, uma vez que não é propriamente uma sonoridade a que esteja, de todo, habituada – talvez o mais comum em termos musicais é seja usar uma ou duas ferramentas contrastantes numa peça musical, ou pelo menos numa secção. Desta forma, acompanhar transições harmónicas tão rápidas, e, no entanto, tão bem pensadas que se entrelaçam de forma natural torna-se uma experiência mesmo muito interessante e inovadora. E tudo isto obtido de maneira estruturada, o que também achei deveras relevante – esta sonoridade rapidamente metamorfoseante e imprevisível é algo que procuro, também, em termos composicionais, mas algo que alimento de forma natural, de forma quase intuitiva e sobejamente livre. Assistir a esta personalidade musical livre e quase “exótica” a ser alcançada de maneira pensada, bem orquestrada e coesa é, para mim, algo de bastante novo e cativante.

Para além disso, a importância dada aos timbres das peças foi algo que contribuiu para esta sonoridade moderna e fascinante – e esta preocupação traz-nos uma sonoridade que é, de facto, única e singularmente vibrante, devido ao uso do arco e do sul ponticello no contrabaixo, por exemplo, e da guitarra acústica, cujo efeito em termos de textura foi simplesmente incrível.

Jeff Ballard e o Combo de Jazz da UA no Cineteatro Alba. © Alex Sousa (Instagram: @alexsousaph)

Nas composições da autoria do próprio Ballard, o que eu considero que realmente se nota é, em primeiro lugar, uma escrita vocal curiosa, não necessariamente em termos tímbricos, mas sobretudo em termos da própria escrita, do uso dos registos, e muitas vezes de uma dimensão dinâmica que é sugerida pela própria escrita, e que é bastante aliciante do ponto de vista do contraste. É principalmente curiosa precisamente por esta questão do contraste, que vai desde a clássica sonoridade poderosa e, porém, encantadora de uma cantora jazz mais “tradicional”, digamos assim, até a momentos que me fazem lembrar mais o estilo vocal de Beth Gibbons nos Portishead, por exemplo, ou até mesmo o de Clare Torry em “The Great Gig in The Sky” (do álbum conceptual dos Pink Floyd e porventura a sua obra mais impactante, “The Dark Side of The Moon”). Para além deste interessante estilo vocal nas suas composições, chamou-me a atenção algo que já tinha lido sobre Jeff ao preparar a sua entrevista (que aproveito para recomendar e cujo áudio fica anexo após este artigo, já agora), que é verificar o seu estilo bastante “fora da caixa”, digamos assim, pela variedade, até geográfica, de ritmos que incorpora nas suas interpretações. Isto confere-lhe um estilo que claramente sai fora da quadratura, que torna as linhas da bateria sempre muito inventivas, pois estas secções nunca são estáticas, ou previsíveis, ou “quadradas”, passe a redundância.

Há, sim, sempre algo que lhe dá corpo, que sai fora do esperado e lhe oferece algo de novo, e que contribui até texturalmente. Às vezes lembra um pouco do estilo de Ringo Starr, até, que faz sempre quase um “contraponto textural” à melodia que lhe traz mais densidade e variedade sonora (uma curiosidade: apesar de ser esquerdino, Ringo toca numa bateria para direitos – o que traz algumas diferenças, como o facto de ele marcar a pulsação no prato de choque, por exemplo – isto pode ser a razão pela qual depreendemos este tal sentido de “descolar da quadratura”).

Outra variável que é interessante na proficiência com que Jeff escreve é que o seu domínio composicional faz parecer que ele, por vezes, quase “brinca” com a música que escreve – isto no sentido de usar motivos muito vincados de um certo estilo ou subgénero musical, por exemplo, e depois metamorfosear o tema por absoluto até chegar ao seu próprio estilo, quase como que uma experimentação ou ensaio. O que não deixa de revelar um conhecimento e mestria de uma diversidade musical muito ampla.

Jeff Ballard e o Combo de Jazz da UA no Cineteatro Alba. © Alex Sousa (Instagram: @alexsousaph)

Voltando às obras criadas pelos alunos da UA, e algo que começa a ser assíduo nestas, é uma assinalável riqueza harmónica. Notamos aspetos notáveis e já característicos, algumas composições com motivos base extremamente viciantes e energéticos, e depois, novamente, a presença de recursos tímbricos também muito atraentes, mas com uma particularidade: o uso de recursos tímbricos para a criação de efeitos programáticos, algo absolutamente criativo, que sempre me fascinou e uma das coisas que eu mais prazer tenho em escrever nas minhas próprias composições.

Na bateria de Ballard, sempre a distorção da métrica, com seu caráter fresco e sobremaneira vivo – e também, como sempre, uma riquíssima vastidão de influências variadas, e articulação das mesmas com uma voz singular, confirmando uma perícia e conhecimento extraordinários. Para além disso, uma “intrincância” (neologismo deliberado) das linhas da bateria completamente louca (no bom sentido, claro), e quase impossível de sequer imaginar (ou pelo menos para meros mortais que não sabem tocar bateria como eu) – e no entanto, uma que soa sempre nova e única, e não algo incompreensível que destoa do “agradável”, digamos assim. É algo que soa espetacular e audaz, mas sem soar “estranho” ou “fora do tempo”, digamos assim. E para além disso, e algo que eu realmente adorei e achei impressionante, foi que Jeff não se limita à secção rítmica, mas sim cria uma nova dimensão tímbrica (o que, já percebi, parece ser um pouco hábito dos bateristas jazz). Mas o tipo de texturas que Ballard cria realmente preenche e enriquece a música em termos texturais, tornando-a muito mais singular, e, lá está, um pouco mais “exótica”, e sem dúvida mais especial.

A sua música, para além de especial, claro, é muito chamativa e fresca, cheia de groove e de uma energia inalienável pelo seu ritmo deliciosamente vivaz e alegre, um carisma que faz a própria música parecer desfrutar do que está a acontecer. Parece, muitas vezes, ir buscar fusion ao rock nos padrões da bateria, mas a voz é da tradição vocal jazzística feminina, poderosa e carismática, e, claro, a maravilhosa riqueza tímbrica que eu tanto adoro é assídua e muito bem trabalhada, sempre no registo de uma fabulosa e contagiante cadência e, lá está, groove, aquele termo tão perfeito para descrever isto mesmo, característico do jazz e que encontrou uma definição bastante direta na música deste concerto.

Jeff Ballard e o Combo de Jazz da UA no Cineteatro Alba. © Alex Sousa (Instagram: @alexsousaph)

Termino por dizer que foi inspirador ver alunos e jovens músicos a formar uma voz composicional dentro do Jazz que é tão única e pessoal, transparente e bem-estabelecida – e, claro, vê-los a ter a merecida oportunidade de tocar com um baterista com um arsenal de ferramentas tão rico, e que também ele tem uma voz tão ímpar, foi muito compensador, senão até comovente.

E antes de me despedir, convido-vos a ouvir a entrevista que me foi generosamente concedida pelo próprio Jeff Ballard, e que deixo após este artigo. Foi uma entrevista indubitavelmente interessante com um artista de uma bagagem, em termos de carreira, já pesada, mas pesada com nomes incontornáveis na história do Jazz, para além de refletir sobre o seu igualmente relevante e digno de notabilidade trabalho em nome próprio.

Agora sim… boas leituras e ainda melhores audições 🙂

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