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O passado dia 18 de Abril foi um dia que fez história em Portugal – e isto, muito simplesmente, porque o jovem guitarrista polaco Marcin Patrzałek veio a Lisboa brindar-nos com a sua arte pela primeira vez, como o destino final da sua Solo Dragon European Tour – à qual se seguirão, com interregnos, Turquia, Canadá e Estados Unidos.

Depois dos seus espetáculos ao vivo no verão passado diante da sua vasta legião de fãs asiática (particularmente no Japão, China e Coreia), esta world tour sucede-se ao lançamento do seu primeiro álbum de estúdio, Dragon In Harmony. O seu primeiro trabalho mais volumoso e coeso, este disco assinala um certo desenvolvimento amadurecimento desde as suas covers virais no YouTube até um projeto com um sentido artístico mais cautelosamente tecido e elaborado, que revela já uma evolução artística e criativa que, para mim, se adivinha muito promissora.

E foi, precisamente, isto que se nos deu a ouvir naquela noite, com um brilhantismo, expressividade, domínio e absoluta mestria que muito poucos têm – e sobre isso? Oh sim, sobre isso tenho muito a dizer.

Desde o início do concerto, e talvez a primeira coisa que nos deleita nele, é o próprio som de Marcin – gozem comigo o quanto quiserem, mas o som dele é literalmente um dos mais bonitos que eu já ouvi sair de uma guitarra. O que pode em si soar perfeitamente corriqueiro, porque um artista destes tem obviamente uma guitarra de altíssima qualidade – neste caso, uma Ibanez que até já tem direito a um signature model – mas o valor deste tipo de som é, de facto, uma das coisas mais interessantes que eu aprendi este ano.

Independentemente do instrumento que se toque, das particularidades tímbricas do modelo em questão, ou das propriedades acústicas da sala de espetáculo, cada músico tem um som próprio, e único, quase que como uma “impressão digital” musical. Isto é, para mim, uma das características mais bonitas que a Música podia ter, e algo que me acalenta e fascina. E esse tipo de som ímpar varia a partir de uma espécie de “peso fundamental”, digamos assim, que é usado como a maneira mais liberta e cristalina de produzir som, através do relaxamento e libertação da tensão substancial ou completa nos membros. Assim está, esta ligação que se cria com o instrumento a partir deste tipo de “ataque”, passe a expressão (não nos esqueçamos que quem toca violoncelo, por exemplo, quase que abraça o instrumento ao tocar, e se isso não é uma união lindíssima, então não sei o que é), é que cria o singular e característico som de cada músico, a nossa dita “impressão digital”.

E, de facto, ao ouvir o Marcin, o que eu sinto é, precisamente, e como não poderia faltar num guitarrista com o seu domínio e mestria, o seu som único, a sua “impressão digital” que é simplesmente fabulosa. Os seus harmónicos são cristaliníssimos e absolutamente deliciosos, os seus tremolos ondulantes porém pacificamente densos. O seu som, e ouvimos isso nos seus acordes cerrados e robustos, é puro e de um poder diretíssimo – este caráter frontal que é deveras transparente, mas inebriantemente acutilante, perfurante e cheio de garra. Enquanto estas flutuações sonoras que lhe trazem novas cores à música consoante o estilo que incorpora (tremolos, percussive fingerstyle, etc.) oferecem à música novas matizes e texturas que criam um contraste muito mais redondo no panorama geral das músicas que toca, este seu registo permanente que lhe assiste na forma de um som inconfundível (e, já agora, incrível) permite-lhe um registo coeso que realmente assina e destaca a qualidade da sua interpretação.

Mas o que é que haveria de melhor para aliar a este som magnífico, do que a garra apaixonante com que Marcin toca? A verdade é que a música que ele interpreta já é incrivelmente energética por si só, o que é bem jogado, sim, mas o seu poder de interpretação não se resume, de todo, a esse registo.

De facto, o que sentimos ao ouvir a sua música é algo que os meus leitores já sabem que eu adoro, que me faz ouvir insaciavelmente Tigran, Khatia Buniatishvili, Cziffra, Kissin e outros que tais – uma garra insaciante, um fogo assoberbante e interminável que vem de dentro dele, não um que o consome, mas um que o preenche. Ouvimos isto nos seus entusiásticos “Go!” lançados nos momentos-chave, sentimos o prazer de ouvir todo esse fogoso poderio como se conduzíssemos um monolugar de Fórmula 1 e o acelerássemos cada vez mais.

É isto que eu adoro, é isto que eu procuro sedentamente em toda a música que ouço – esta vontade, este ardor, esta potência pura e dura que é inapagável, de um poder e pungência cada vez mais imensa, que verdadeiramente faz a alma gritar (e essa, para mim, é uma das melhores sensações que alguém pode ter).

Eu sei disso, porque é uma das coisas que mais adoro na Música. Quer a tocar, quer a ouvir. Muitas vezes, quando me perguntam sobre as minhas bandas preferidas e eu atiro “Nirvana e Radiohead”, eu própria me fico a questionar o porquê de escolher duas bandas tão díspares e de uma complexidade musical tão diferente – quero eu dizer, Radiohead com as suas progressões jazzísticas, compassos mirabolantes, harmonia microtonal e efeitos sonoros à descrição, e Nirvana com músicas de quatro acordes, quase (que têm muito mais que se lhe diga musicalmente do que parece, no entanto). Mas agora me apercebo o porquê.

Os Nirvana foram a primeira banda a dar-me essa sensação, a fazer a minha alma gritar. Por isso é que quando eu os descobri não conseguia parar de os ouvir, por isso é que não conseguia compreender, não conseguia deixar de me render completamente à sensação de os escutar. Mas chego à conclusão que, tal como todos os músicos têm um som diferente, todos os músicos que nascem com este ardor nascem também com um fogo único. É verdadeiramente algo de maravilhoso (só me lembro agora daquele meme “So, it’s like drugs?” “It’s better than drugs, Jeremy”).

Mas nascer com esse fogo é algo já de si extremamente raro, e nunca vi ninguém a passá-lo cá para fora de maneira tão sonante e liberta como Marcin. E talvez seja esta sonoridade tão direta e de uma potência e intensidade tão transparentes que nos levem a outra que é para mim uma das melhores características de Marcin: a genuinidade. E, como não podia deixar de ser, sobre isto tenho também muito a dizer.

Marcin Patrzałek podia muito bem ter sido mais um virtuoso da guitarra clássica, e ficar gravado para a história do instrumento entre lendas sonantes como Ana Vidović, David Russell, Eliot Fisk, John Williams, Bertha Rojas ou Oscar Ghiglia, entre tantos outros -incluindo até o seu querido Villa-Lobos que escreveu uma peça que o Marcin adora, mas cujo nome, indecifrável quando o tentou pronunciar, começo a achar que foi deveras deturpado (tipo telefone estragado) até chegar até ele. Mas onde eu queria chegar é: Marcin não escolheu esse caminho. Ele decidiu, sim, brotar para fora do vaso e ser apenas um, único no mundo e pioneiro naquilo que faz.

E o que eu sinto é que, felizmente, nunca domaram este seu espírito arrebatado. Muitas vezes, ao longo do percurso académico na música, porventura especialmente no percurso mais virado para a vertente da performance em música erudita, ensinam-nos a ter moderação, controlo e atentar, senão até privilegiar, um pouco, o contraste.

O que não é errado, de todo. Aliás, diria até que este aspeto da interpretação é muito importante. Mas o que eu sinto é que às vezes, como intérprete, fazer a interpretação corresponder a estes padrões estilísticos ditos “adequados” pode torná-la nalgo que, por nos ser menos ou pouco natural, deixa a nossa expressividade um pouco estéril. Revela-se, portanto, uma tarefa zelosa e difícil conciliar esse “grito interior”, esse fogo que eu tanto adoro, com este “limar de arestas” que uma boa interpretação exige (leia-se boa interpretação entre aspas, porque quem sou eu para ser a polícia das boas interpretações? Para além de ser um tema muito subjetivo, e eu não concordar necessariamente com a obediência aos padrões e cânones clássicos daquilo que se denomina “bom gosto” em termos estilísticos). Portanto, para mim foi refrescante e novo encontrar em Marcin a reunião de todas estas “características”, digamos assim, estes detalhes mais “refinados” que são quase obrigatórios num músico profissional e com treino para tal (eu diria músico clássico, mas acho que Marcin é muito mais do que isso) não são de maneira alguma “telhados” ou barreiras à sua interpretação, limites estilísticos que se imponham à sua expressividade afirmando um estilo quase autoproclamado “mais bem-torneado”. Estas são armas que ele guarda no seu arsenal, e que inclui presumivelmente inconscientemente no seu imbuído poderio – mas é a este último que ele dá total projeção e liberdade, e isso sente-se. Não são as normas e pormenores que o delimitam, mas é ele quem determina como e quando os usar, de modo completamente seu. Testemunhar isto foi muito inspirador, tenho que frisar, e para mim um dos atributos mais artísticos que se podem pretender num intérprete, uma que eu até a este concerto só sonhava em ver. Mais ainda, Marcin toca com uma paixão e admiração avassaladoras pela sua arte, com uma frescura e dedicação à música que são constantes, e infinitas – de facto, algo muito especial no seu tocar é que, quando o ouvimos, o que sentimos é que ele ainda é o mesmo Marcin que pegou na guitarra pela primeira vez, se fascinou perdidamente e nunca mais a não a largou.

Porque tem esse vigor viçoso, essa vontade irresistível, essa procura pela essência e pela musicalidade nas entrelinhas do silêncio que prendem o coração à música, pelo menos o de quem a ama.

Escutá-lo, e acho que esta é a analogia mais inocente, mas também mais franca que posso fazer, faz-me lembrar a minha primeira aula de piano, quando saí orgulhosamente e de peito cheio, a afirmar convicta “quero ser pianista” (ridícula ou adorável, já não era esta a primeira vez que eu proclamava esta ideia, na altura, um pouco maluca… da primeira vez, eu ainda nem sequer tocava e já tinha feito uma lista das cidades onde eu ia atuar quando crescesse. Lembro-me que a minha cabecinha de sete anos por alguma razão queria muito dar um concerto de piano em Évora.). Mas o que é certo, é que dez anos depois, ainda me sinto assim.

Nunca me esquecerei de estar à espera que o meu avô me fosse levar à segunda aula e de estar a florear com os meus inconscientes passos trôpegos de ballet “o paraíso fabuloso” para onde eu iria, e mais não sei o quê com todos os grandes adjetivos que eu na altura sabia (acho que a parte dos adjetivos superlativos sintéticos e absolutos ficou). Sempre era irremediavelmente melosa – mas com essa idade, não somos todos?

Tudo isto para exprimir que me maravilhou perceber que Marcin ainda tem esse amor cândido pela guitarra e pela música, que este não se esbateu ou “racionalizou” de todo com o tempo. E este deve ser, no meu entender, um objetivo fulcral para qualquer músico: acho sinceramente que todos os músicos profissionais que sejam realmente apaixonados pelo que fazem devem ter esta particularidade. É algo fundamental, e aparentemente simples, mas longe de o ser. Tal como o próprio Marcin referiu, tudo na vida tem altos e baixos, e a nossa relação com um instrumento é assim mesmo – é uma relação como qualquer outra, até, eu diria. E tem de ser tratada como tal.

Acho que é esta relação tão bela e intemporal (que me recorda o “Time After Time”, na versão do Chet Baker) que nos oferece o sentimento de completa liberdade que mencionei anteriormente. A liberdade que está neste amor, nesta ligação imediata, nesta ausência de cansaço numa atividade tão intensa, nesta entrega completa e inevitável da alma e do ser – e um ser que me parece tão genuíno.

Se o Marcin fizesse parte de uma banda, se tivesse esse tipo de perfil de rockstar como Jimmy Page, Brian May ou Angus Young, ele provavelmente teria um estatuto mítico enquanto lead guitar. Aliás, a própria promoção da imagem dele e a maneira como ele é apresentado sugerem um bocado essa aesthetic, digamos assim, para os nossos Pinterest lovers, insinuam essa persona lendária, quase inalcançável, derradeiramente artística e com um sabor a secreto que é ardentemente cativante, que confere um carácter um pouco rebelde.

Porém Marcin é um one man show, e o que o torna mais consensualmente fora de série é o facto de que ele faz o que uma banda inteira faz. E claro que este formato “multifunções” a solo lhe dá uma visibilidade e destaque muito maiores no decurso de um concerto, e salienta também muito mais o seu próprio caráter, o que pode ser incrível no sentido de criar uma empatia mais sincera com o público. Ver Marcin ao vivo, quer pela sua interação com a plateia, quer pela própria forma como toca, faz-nos perceber o quão genuíno ele é, o que para mim é manifestamente belo. Diria até que Marcin me faz lembrar um pouco o (também jovem) pianista prodígio Yoav Levanon, com os seus agradecimentos efusivos, a fazer corações com as mãos para a audiência, totalmente adoráveis. No entanto, Marcin continua a surpreender-me por uma presença que se sente que é totalmente verdadeira e transparente, e considero que isto é algo de inalienável nele e também um traço consensual da sua personalidade, e, por conseguinte, também da sua música. Vê-lo ser tão autêntico em palco chega a ser um pouco vê-lo mostrar uma certa vulnerabilidade, no sentido em que ele abdica ligeiramente do seu pedestal de “estrela” para estabelecer uma conexão com o público que é lindíssima. É, de certa forma, inevitável ficar rendido a esta jovem promessa com um talento tão exultante e de uma bondade, afabilidade e jovialidade embevecedoras, e que, ainda por cima, toca como toca. Cada vez mais me convenço, e o concerto de Marcin é mais uma excelente prova disso, de que só quando ouvimos um artista ao vivo podemos realmente perceber, vivenciar e reconhecer todo o seu valor.

Esta genuinidade e transparência são igualmente algo que catapulta a espetacular musicalidade de Marcin. Quer dizer, nota-se que o ardor feérico e gritante da sua música são algo lhe que é intrínseco, que o preenche de uma maneira estratosférica, até mesmo transcendente. Antecipamos com os seus “Go!” os beat drops, partilhamos o seu sorriso deliciado nas partes mais stretto e desafiantes, escutamo-lo até entoar em surdina as melodias que vai executando (o que, relembremo-nos, demonstra um cantabile nas cordas dedilhadas que é precioso para qualquer intérprete deste tipo de instrumento).

Isto faz-me lembrar um pouco as famosas (para alguns, porventura infames) gravações de Bach de Glenn Gould, que eu tanto adoro, em que ele se farta de bater o pé enquanto toca, de cantar sobrepondo-se à polifonia, entre outras façanhas que, goste-se ou não, não deixam de ser de alguém que tem uma voz singular e sem cópia, para além de muito especial. Censure-se ou não essas características, que poderão ser percebidas como “falta de profissionalismo” ou “desrespeito pelos ouvintes”, e aprecie-se ou não, enfim, as gravações de Gould (e algumas não são para o paladar de todos), apesar das suas “prevaricações” imperdoáveis dentro dos cânones clássicos, de uma atitude que chega a parecer “do contra” em termos de estilo, e de certos detalhes ditos “imperfeições” perfeitamente suprimíveis, é escusado, e até um pouco retrógrado dizer que Gould não é completamente artista. Agora se é génio, isso já depende de a quem perguntarem. Mas que é um artista genuíno, e de uma arte plenamente única, ai disso não restam dúvidas. Ninguém faz Bach como Gould, porque ninguém se atreve a tocar Bach com a liberdade de Gould (descansem relaxados que qualquer coisa a “polícia do pedal” chacinava-os, também). Mas a sua autenticidade e originalidade tornam-no um nome controverso, sim, mas incontornável e sem igual. E por isso Gould é alguém que eu admiro, principalmente, por ser um símbolo de arrojo, criatividade e, acima de tudo, de fidelidade à sua essência e voz únicas – o que considero extremamente difícil, mas também importante e louvável.

Quando Gould interpreta, e aqui está um ótimo paralelismo com Marcin, está completamente imerso naquilo que está a fazer. Não, aliás, imerso não é a descrição certa – Marcin é antes um veículo do inconsciente.

Isto é algo que eu aprendi com o meu professor de jazz, que, coincidência das coincidências, (ou então não, porque quase toda a gente que gosta de jazz gosta do Keith Jarrett), gosta do Keith Jarrett. Mas vá, o meu professor não gosta de Keith Jarrett – ele é obcecado com ele.  Algo de que ele me falou e que me interessou imenso foi sobre uma entrevista em que o Keith dizia que quando se senta ao piano, é como o tal veículo do inconsciente. O que é em si um conceito aliciante – na medida em que o que ele queria dizer é que ele não pensa, não constrói, não faz nada senão tocar. Ou seja, o seu grau de proficiência é tal, que toda a música que produz, produz com ferramentas que já tinha assimilado de tal maneira, que usa inconscientemente, criando esta espécie de estado de “transcendência” que leva à descrição deste efeito em atuações públicas do artista. E o resultado? Bem, é o concerto de Colónia (que é a obra genial que é).

E para mim, é (também) isso que eu sinto ao ouvir o Marcin. O tocar música consome-o completamente, ele transforma-se num transmissor de uma expressão poderosíssima, e eletrizante, e direta – e parece-me que nada lhe dá um prazer tão berrante como esse.

O que é perfeitamente compreensível, para ser honesta. Se eu conseguisse fazer isso todas as vezes que toco, rejubilava todos os dias.

E a tudo isto ainda acrescenta a sua enorme presença em palco – pelo que, com uma capacidade de transmissão e comoção destas, é impossível a música de Marcin não conquistar por completo as almas da plateia. Mas toda a sua presença, adensada pelo amor visível e dedicação quase metafísica à música que toca, é o que realmente leva o público ao rubro. Na verdade, quando o concerto acabou estava a sentir o pulso direito tão estranho de tanto ter aplaudido – enfim, traumas de quem decide ser inteligente e teima em tentar tocar a Baba Yaga de Mussorgsky com 13 anos ou coisa que o valha –, que comecei logo a questionar as minhas sessões de estudo de piano da semana seguinte. Mas a verdade é que não conseguia pensar noutra coisa senão naquilo a que tinha acabado de assistir.

É este o tipo de atenção com que Marcin nos prende, com que a sua música nos prende. É não só o completo fascínio, mas sim também a completa imersão.

O groove e a atitude com que toca, a postura que chega a ser até algo “rockeira”, a forma expressiva como constrói a sua movimentação em palco, o caráter decidido e contagiante com que se desloca durante a atuação, até as suas próprias passadas em palco se repercutem em nós, fazem-nos vibrar e endoidecer tipo fãs doidas dos The Beatles nos anos 60 (não se preocupem, caros leitores, ninguém atirou “presentes” estranhos para o palco nem desmaiou… acho eu). É uma sensação mesmo incrível, e conseguir trazer esta energia para o palco numa sala que não é propriamente um estádio já é, por si só, um feito notável (e espero bem vir a ter a oportunidade de ver o Marcin a atuar numa arena com a dimensão do seu talento).

E falando de feitos notáveis… vamos falar do que deve ter trazido muitos de vós até aqui: o YouTube. Talvez uma das fontes primordiais de atenção para o trabalho de Marcin tenha sido esta plataforma, e porventura, como tanto muita gente que começa por angariar seguidores e tem imenso potencial, maravilha as pessoas pelo virtuosismo quase “impossível”, e que facilmente deslumbra (e com o devido mérito, que não é pouco). Aliás, já que estou a ser completamente sincera, a primeira vez que o Marcin apareceu nos sugeridos do YouTube e a minha mãe o pôs a tocar, a minha primeira reação foi perguntar a um guitarrista que então era meu amigo se aqueles vídeos eram mesmo reais.

E daí chegamos até hoje, em que eu saio do concerto com a alma a querer gritar, sair-me pelo coração fora. E com a voz rouca, mas até isso me parece um bom “souvenir” das maravilhosas memórias deste concerto (se bem que o autógrafo também foi bastante fixe 😉 )

E nisto lembro-me de um comentário engraçado da minha professora de piano, no seu caráter habitual mas muito seu, sobre ouvir pianistas a “tocar tão bem que até mete nojo”, e de depois eu estar à espera dessa célebre frase enquanto ouvíamos o Sokolov, e ouvir em vez disso um “é que é impossível sequer ter cobiça deste homem, a sua música é simplesmente incrível”.

Acho que é isto que acontece com Patrzałek. Quero dizer, quando se ouve música assim ao vivo, percebe-se que o encanto não está no virtuosismo.

Marcin é extremamente bom naquilo que faz. Sim, disso não há dúvida. O seu virtuosismo é pura e simplesmente extraordinário? Claro que sim. Mas a música dele não é sobre isso.

O seu maior valor não é tocar duas mil notas por segundo com tremolos, harmónicos e batidas à la carte pelo meio que lhe dão logo 5 milhões de visualizações no TikTok (se bem que não querendo desmerecer este tipo de feitos impressionantes, de maneira nenhuma, pois o seu virtuosismo magnífico, é, sim, fascinante e sobremaneira louvável). O valor dele está – e isso vê-se logo quando o ouvimos, é imediato e apaixonante -, no completo domínio e imersão na música que toca.

Esta não é uma sensação que se explique facilmente, mas é uma que eu tenho especialmente ao tocar em conjuntos – é um certo sentir da música que dá lugar a uma direção e imersão completas, que nos permite sentir a música dentro de nós de uma maneira tão liberta e com uma agógica tão alargada, dinâmica e fecunda que nos permite uma musicalidade e fervor que não conhecem limites, e mais do fundo da alma não pode ser: não é um controlo, mas sim, um domínio completo. Não é sentir que a música está dentro de nós, é sentir que nós estamos dentro da música (quem me dera poder dizer que não é como uma espécie de “sanduíche musical”, mas o problema é que é, efetivamente, um bocado isso).

É este domínio potente e desgarrado que verdadeiramente me abala e me rende na arte de Marcin. Mas tal é, ainda, enaltecido por uma criatividade incrível.

Sim, porque para além da sua formidável capacidade de execução, não nos esqueçamos de mencionar que Marcin é notavelmente inventivo. Relembremo-nos de que ele é uma banda inteira num só, o verdadeiro significado de one man show (continuo a adorar que se identifique com a sua expressão “percussive posterboy”); mas, para além de pioneiro dentro da sua prática instrumental, ele é extremamente original não só na conceção das suas próprias ferramentas, o que por si só já é absolutamente brilhante, como também na maneira como as incorpora e articula na sua linguagem musical – porque Marcin não é alguém que se cinja a usar os utensílios que conhece do modo mais adequado possível, mas sim de continuar a encontrar novos meios, ou seja novas ferramentas (passe a repetição) para chegar a novos horizontes, o que, sinceramente, considero algo de fantástico.

Não se limitando a transformar a guitarra numa autêntica plataforma fervilhante de novas cores e timbres (ia fazer uma comparação horrível com aqueles carrilhões multifunções 10 em 1, mas achei melhor não), acaba por revolucionar cada vez mais a guitarra porque não se limita a nada, e continua a criar mais e mais técnicas dentro do seu género, sempre na busca por efeitos diferentes e novos horizontes tímbricos e texturais (ainda estou mesmerizada pela maneira como ele criou toda uma bateria, com todos os seus elementos e suas particularidades e diferenças, desde o floor tom até ao snare drum, a partir de um simples tampo idiofónico). E isso? Não é o mero resultado de uma especialização em flamenco. Isso é ter a música dentro de si.

O que nos leva ao último ponto deste artigo, e um que eu gostava mesmo de abordar.

Quem estiver acostumado a ler os meus artigos porventura já terá percebido que eu estou muito habituada a focar-me na composição. É algo que me é característico, para ser franca. Seja o que for que eu estiver a ouvir, o mais provável é que eu esteja a pensar muito mais na música em si do que em quem a está a tocar e na sua interpretação. Peço muita desculpa, mas é a verdade.

Mas no caso de Marcin, a minha reflexão mais “composiciona ocupa uma nota no fim do artigo – então, como podem perceber, ele é um completo animal de palco, com uma musicalidade potentemente encantadora.

Mas então e em relação às suas composições? Bem, eu acho que as suas composições revelam um certo desabrochar artístico.  É, aliás, o próprio Marcin quem nos revela ter consciência disso quando, durante o concerto, conta a história sobre quando estava, há anos atrás, a fazer vídeos para as suas redes sociais, quando percebeu que o que queria mesmo ser era ser artista e ir para além disso – e isto, por si só, é prova de que o virtuosismo dele, por extraordinário que seja, não chega a ser a característica vital ou mais importante da sua música – o que é muito bom.

Um artista, esse alguém que tem a Música dentro de si, como eu referi anteriormente, na minha opinião é, efetivamente, alguém que já não fica por olhar para uma partitura e tocá-la eximiamente bem (redundância deliberada). Ele tem a Música dentro de si, e portanto tem um objeto criador e transmissor insaciável dentro de si. Mas este sentido criador, aliado a um espírito dinâmico, curioso e aberto, é que tornam um artista completo no sentido mais verdadeiro da palavra.

As suas composições demonstram, sem dúvida, este “acordar” para o horizonte inventor do músico, mas são algo que também o exprime como pessoa e que está perfeitamente escrito para a sua expressividade – quero eu dizer, a música de Marcin, primeiramente, é incrivelmente contagiante, viciante. Até, mais significativamente, em termos melódicos.

O ritmo também é sempre muito atraente e faz-nos realmente “abanar a cabeça”, na maneira menos elegante de o explicar, mas quiçá mais percetível. Quero eu dizer, há um sentido de cadência muito grande, e consideravelmente contagiante – como em Portishead, por exemplo.

A harmonia é também algo que nos satisfaz deliciosamente os ouvidos, pelo uso assíduo da escala menor harmónica, e por vezes de uma linguagem mais modal e permeada por sequências como as de quartas e quintas paralelas, características do Impressionismo (se bem que estilisticamente não têm nada a ver com este período na maneira como Marcin as trata). O uso da sensível na escala menor torna realmente a música de Marcin muito poderosa, direta e satisfatória, ainda que sendo uma ferramenta, de certa forma, simples.

E acho que o ponto é precisamente esse – a vertente composicional de Marcin é algo cuja maior complexidade está principalmente na escrita da parte instrumental, e não necessariamente na complexidade na escrita e progressões harmónicas em si – mas atenção que não digo isto no aspeto negativo, de todo. Já por inúmeras vezes elogiei aqui no blog artistas que criam música simples, porém genial – o que será, porventura, o trabalho mais árduo de todos – mencionaria, sumariamente (para além dos meus adorados Nirvana), nomes como Ólafur Arnalds ou Philip Glass). E não digo isto de todo no sentido de que este primeiro álbum seja como o Pablo Honey dos Radiohead, que por muito que contenha boa música, do que não duvido, não tem nada a ver com a apoteose dos álbuns de topo da banda; ou seja, embora o talento tenha lá estado desde o início, há uma imensa e visível evolução e crescimento em genialidade e valor artístico com a progressão dos álbuns do grupo britânico.

Mas não é isto que eu sinto com a música de Marcin.

Sinto, sim, uma escrita agradavelmente intensa que nos traz, de facto, não a genialidade em criar obras complexíssimas (J. S. Bach, estou a falar de ti), mas sim a capacidade fantástica de criar música notável a partir de algo simples –o que considero uma das capacidades composicionais mais difíceis de alcançar.

O que me cativa mais nas composições de Patrzałek é que a música acaba por abraçar perfeitamente os ouvidos, por estar tão bem escrita, e de uma forma que é tão intuitiva, mas ao mesmo tempo tão direta e totalmente viciante. Tal como já acabei por concluir tantas vezes, a maior genialidade está em fazer muito, sem grandes ferramentas exóticas (até na própria génese da sua atividade, Marcin usa uma única guitarra para fazer tudo e mais alguma coisa). E, claro, só ele para interpretar de maneira a tornar a sua própria música numa com que se eleva a um cariz ainda mais especial.

Em relação aos seus arranjos e covers, e também às suas colaborações, parece-me que a expressividade e estilo de Marcin são não só muito aparentes e um “selo patente” (felizmente) em tudo o que faz, mas que o seu estilo é, também, muito versátil. Ou seja, nos arranjos que ele faz, e aí é que está o verdadeiro patamar da qualidade dos mesmos, aos meus olhos, o tema que ele interpreta, na sua essência, é perfeitamente reconhecível e nada deturpado, e, no entanto, é quase uma “reinterpretação” do tema ao estilo do Marcin (como aqueles vídeos do YouTube que reescrevem o “Baby Shark” como se fosse Bach… – e eu tenho mesmo que parar com estas comparações terríveis…).

Basicamente, o que eu quero dizer é que a voz de Marcin é alta e clara nos seus arranjos, e isso revela, sem dúvida, uma voz composicional definida, cheia de carisma e sem dúvida portentosa.

E esta sua versatilidade tem dado lugar a colaborações fantásticas. De facto, Marcin tem uma impressionante facilidade em se adaptar a outros estilos musicais sem desprivilegiar nem retirar da ribalta o seu próprio, a sua música permite aos artistas que com ele colaboram (que têm feito um trabalho inacreditável, muito sinceramente… – Tim Henson, Ichika Nito e Delaney Bailey são alguns dos meus preferidos) uma fusão muito autêntica e original, que surge deste tipo de trabalho partilhado.

Termino por dizer que espero muito sinceramente que Marcin se consiga afirmar cada vez mais como artista, e ter cada vez mais oportunidades para maiores e maiores palcos. Não só porque todo o seu talento, paixão e dedicação àquilo que faz o merecem, mas sim porque seria uma mais-valia para todos nós podermos usufruir de mais obras e performances suas. Na minha opinião, o que o panorama musical precisa neste momento é de alguém que tenha (e transmita) este fogo e vigor ao tocar, este caráter tão ardente e vivo, esta abertura estilística e, talvez acima de tudo, a vontade de fazer música que seja genuína e indubitavelmente sua.

Porquê, honestamente? Porque acho mesmo que é exatamente isso que o legado musical da nossa geração precisa. E é por isso também que tenho que finalizar este artigo com um enorme “obrigaaaaaado” (como os que Marcin aprendeu de propósito para distribuir durante o concerto) ao próprio do Marcin Patrzałek por ter sido exatamente isso que trouxe na manga para a passada noite de 18 de Abril.

E, claro, depois de uma primeira estreia em Portugal de tal forma fulgurante… não podemos senão esperar que não seja a última 🙂

Boas leituras… e (ainda) melhores audições!

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