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“Tenha coragem, coração: já passou por coisas piores. Seja forte, disse o meu coração; Sou um soldado; Já vi coisas piores do que esta.”

Podem ter vivido há milénios atrás, mas os Gregos com certeza sabiam criar um bom drama (e não só). Desde deusas a sair de conchas e rebeldes a carregar pedras até exaustão, muita cabecinha tinham os da Antiguidade Clássica para criar uma religião com uma história extremamente rica e personagens e mitos mirabolantes – e, é claro, nem a História nem a Arte podiam passar a leste de tudo isto.

O ramo da música erudita não foi exceção: é exorbitante o número de trabalhos permeados por estas lendas antigas que surpreenderam, desde sempre, a Humanidade pela sua criatividade e emoção. Encantados com este mundo vastíssimo de temáticas para abordar, nomes como Beethoven, Strauss, Gluck, Monteverdi, Massenet, entre tantos outros, foram beber inspiração a esta dimensão fantástica perpetuada na Antiguidade Clássica, e isto tornou-se nalgo que transparece no mais variado repertório, desde o Barroco ao Contemporâneo.

É por isso que o artigo de hoje se foca precisamente nesta vasta influência que a mitologia grega teve na música clássica e nalgumas das lendas que foram usadas já por várias vezes em conhecidíssimas obras do repertório erudito, selecionando e abordando algumas das peças mais marcantes dentro desta temática e, ainda, explorando um pouco a relação entre a música e os deuses na Antiga Grécia.

Então, não é segredo para ninguém que os Gregos queriam uma resposta para tudo (não tivessem eles inventado a filosofia e a matemática, as pedras no sapato de qualquer estudante do ensino secundário). Motivados pela razão e pela sede por conhecimento, os gregos adotaram uma religião que desse resposta a todas as suas perguntas: a religião grega.

Pintura alusiva aos deuses gregos (Os Deuses do Monte Olimpo, de Domingus Sequeira)

Pois claro, não nos esqueçamos que a mitologia grega era, de facto uma religião, e que perdurou até ao tempo dos Romanos – porém, quando o Cristianismo se instalou na Europa, esta religião transformou-se apenas nalgo mitológico. E, sendo algo mitológico, veio a inspirar a Arte desde o Renascimento.

A ideia-chave desta transição é a diferença entre a razão pela qual se retratavam os deuses – na Grécia Antiga, os deuses eram retratados por veneração, enquanto que, a partir do Renascimento, a mitologia grega era vista puramente como objeto estético.

Um bom exemplo disto será, por exemplo, o Nascimento de Vénus de Botticelli: este é alusivo à mitologia greco-romana, retratando o momento em que Vénus (versão romana de Afrodite) sai de dentro de uma concha (imaginação não falta, não é mesmo?).

Nascimento de Vénus, de Sandro Botticelli

Agora, claro que Botticelli não pintou esta cena como uma forma de veneração aos deuses – o pintor via Vénus como um objeto puramente estético.

Ora, Botticelli não foi o único.

Mas não comecemos por aí – primeiro, vamos falar um pouco da maneira como os Gregos usavam a música (porque, afinal de contas… eles tiveram um pouco de culpa).

Como já tinha referido neste artigo, foram os Gregos que começaram a usar a música na interpretação das suas tragédias – todas as histórias inacreditáveis e fantásticas perpetuadas pela sua mitologia já inspiraram os próprios gregos no seu tempo, que as transformavam em peças de teatro, que eram, por conseguinte, encenadas para o público na Grécia Antiga.

Ora, a música na Grécia Antiga era fulcral na sociedade: a maior parte dos Gregos treinava para tocar um instrumento de forma competente, e a Música estava presente em todo o tipo de eventos, desde épocas festivas religiosas e casamentos a ajuntamentos e banquetes.

Os filósofos gregos viam a música como a harmonia no Cosmos e na alma Humana (lindo, não é?), criando, assim, uma ligação entre a Música e a Matemática, na religião grega.

E, claro, na época do Renascimento, os demais artistas e senhores pensadores pegaram em todas estas maravilhas gregas antigas e voltaram a popularizá-las – aliás, a primeira ópera de que se tem conhecimento, Dafne, foi uma tentativa da Camerata de’ Bardi de reviver as tragédias gregas que eram encenadas na Grécia Antiga, sendo a lenda de Dafne parte de todo o complexo mitológico grego.

Ora, é mais ou menos por esta altura que aparece o primeiro grande génio da ópera, Claudio Monteverdi – que, na altura, não era mais do que um violagambista mal pago que publicava uns madrigais de vez em quando.

No entanto, foi ele que criou a conhecidíssima ópera que vai ser a primeira em foco neste artigo: L’Orfeo.

Ou melhor, o que vai ser focado é a lenda que está envolvida no seu libreto – a lenda de Orfeu e Eurídice inspirou os mais variadíssimos compositores a criar não só óperas, mas também balés, poemas sinfónicos, ou até mesmo concertos baseados neste tema.

O New Grove Dictionary of Opera que o diga: segundo o volume 3 desta série, para além de Monteverdi e Gluck, também nomes como Liszt, Berlioz, Offenbach, Haydn, Rameau e até Stravinsky se inspiraram nesta lenda para as suas obras (aliás, é uma lista muito interessante, que vou deixar aqui).

Esta história centra-se em Orfeu (não fosse a lenda de Orfeu, mas… pronto), herói da Trácia e filho da musa Calíope e de Apolo, deus do Sol, artes e música. Este último ofereceu ao filho uma lira, pela qual ele ficou conhecido – de facto, Orfeu era mais prestigiado pelas suas capacidades musicais do que guerreiras, encantando todos os que os ouviam.

Foi assim que um dia Orfeu encontrou a bela ninfa Eurídice, por quem se apaixonaria e com quem se casaria mais tarde.

Mas… tudo isto seria sol de pouca dura (o pai dele não o ajudou lá muito nesta) – um dia, enquanto Eurídice passeava com as amigas ninfas, apanhou o pastor Aristeu de surpresa, tendo este, tal como Orfeu, se apaixonado por ela. No entanto, ao tentar conquistá-la, ela foge, e morre ao pisar uma cobra que acaba por lhe morder o pé.

Desesperado, Orfeu tocou e cantou aos homens e deuses, mas, como não obteve resultados, decidiu ir diretamente ao reino de Hades, lá cantando o seu amor por Eurídice, comovendo de tal maneira Hades e Perséfone que o deixaram levar Eurídice de volta, mas com uma condição: que ele não olhasse para ela até que eles chegassem a Terra de novo.

Mas, é claro, os gregos são tão trágicos que não podiam deixar a história acabar bem – Orfeu olhou para trás para ver se Eurídice o seguia, e ela imediatamente voltou para o reino dos mortos.

Sobre o desenlace, há várias versões, mas numa coisa todas elas concordam – Orfeu deixou de se interessar por mulher (ou ninfa) alguma e morreu infeliz.

No entanto, é melhor acabar com a versão ligeiramente mais fofinha desta lenda – Orfeu foi enterrado pelas musas em Limetra e a sua lira foi colocada por Zeus entre as estrelas, e Orfeu reencontrou finalmente Eurídice, nunca mais deixando de a contemplar.

Este será um bom momento para relembrar que a lenda de Dafne, referida anteriormente, que deu origem à primeira ópera de sempre, tem, também alguma relação com a de Orfeu – nesta lenda, Cupido lança uma flecha sobre Apolo que o faz apaixonar-se por Dafne, uma ninfa, que acaba por ter que se transformar num loureiro para fugir das incessáveis perseguições do deus do sol.

Mas, afinal, este artigo é sobre mitologia grega na música clássica, e não na ópera – por isso, passemos a outros exemplos.

Em primeiro lugar, parece-me importante abordar o balé Daphnis et Chloé, de Ravel, por várias razões – em primeiro lugar, porque o enredo do balé não é baseado propriamente numa lenda grega, mas sim numa história escrita por um autor grego na Antiguidade, como a Odisseia ou a Ilíada (mas sem ser assim tão épica), e, em segundo lugar, porque esta história relaciona-se muito mais com os elementos mais “terrenos” da mitologia grega: têm um papel muito mais central Cupido ou as ninfas do que os deuses em si.

Esta história é, então (segundo se crê), da autoria de um tal de Longus, escritor grego da Antiguidade, e não é exatamente igual àquela que se representa na peça de Ravel, precisamente por esta ser um balé.

Fazendo uma saladinha de versões diferentes desta história, Daphnis e Chloé ambos cresceram na mesma família, ao serem abandonados e adotados pelos seus pais. Crescem num clima pastoral e bucólico, cercados pela Natureza e pela inocência. E, agora resumindo e omitindo as partes mais chocantes, Chloé é raptada por piratas e escapa apenas por ter sido salva pelo deus Pã. Finalmente, Daphnis e Chloé reencontram-se e casam-se (foi muito resumido e sei que parece não fazer muito sentido, mas… penso que no balé é mesmo assim).

Provavelmente Daphnis et Chloé, Paris Bordone, século 16

Mas Ravel não foi o único compositor impressionista a usar mitologia grega como inspiração – e, agora, passando de Ravel para Debussy, reparemos num detalhe na história de Daphnis e Chloé: ao casarem-se, no balé de Ravel há uma mímica encenada em que se evocam Pã e Syrinx, duas outras figuras da mitologia grega: e esta última, Syrinx, também tem a ver com uma peça de um compositor impressionista, neste caso o francês (como não podia deixar de ser) Claude Debussy.

Tal como Dafne, de quem falámos há pouco, Syrinx era uma ninfa que também foi perseguida pela sua beleza – mas neste caso pelo tal deus Pã, deus dos bosques, dos pastores, dos campos e dos rebanhos e fã de música. Ora, Syrinx já não aguentava mais tamanha perseguição, e pediu que a livrassem do seu sofrimento.

Pan e Syrinx, François Boucher

Surgiu, assim, um desenrolar, mais uma vez, injusto para Syrinx, que foi transformada num caniço para poder evitar Pã – mas não terminaria por aí, pois Pã usaria, ainda, o caniço de Syrinx para criar um instrumento: a flauta de Pã.

É, então, neste contexto que surge uma das mais famosas peças para flauta solo, a Syrinx de Claude Debussy – e o que é interessante é que esta peça não tem a ver com a ninfa em si, mas sim com os últimos momentos de vida de Pã.

Portanto, Syrinx, ainda que transformada em caniço, ficou nas mãos de Pã para sempre, pois este continuava a tocar a flauta de Pã e a tê-la consigo.

No entanto, Pã está agora sozinho na sua gruta, prestes a deixar o Mundo, e toca uma última melodia na flauta de Pã, que revela tristeza, ansiedade, arrependimentos, até incerteza em relação ao futuro.

Debussy cria, assim, uma peça de tal ordem delicada que parece querer transparecer uma mudança em Pã, e mostrar um lado mais sensível da sua personagem – quase como que redimindo a criatura feroz, selvagem que este representa ao transformá-lo numa criatura frágil e moribunda que revive os seus arrependimentos uma última vez.

E passamos de uma ninfa para a “comandante” das ninfas: desta vez, não precisamente para mitologia grega, mas greco-romana, com Vénus, a deusa do Amor.

Por isso é que passamos a Tannhäuser, de Wagner (estava a faltar algo excruciantemente trágico, não é mesmo?) – e, neste caso, a desgraça vem de uma terra chamada Venusberg, o lendário outro mundo de Vénus.

Aquilo que eu acho particularmente interessante nesta lenda é que Tannhaüser foi, efetivamente, documentado em várias fontes do século 13, que incluem referências à sua genealogia – no entanto, não a qualquer tipo de data. Repare-se, ainda, que este mito já não é do tempo da Roma Antiga como império vastíssimo, mas sim de uma tardia Idade Média, tendo-se transformado numa balada folclórica alemã antes de servir de inspiração a Wagner.

Mas, afinal, a grande façanha de Tannhaüser não estava relacionada com o folclore alemão, mas sim com a mitologia greco-romana – Tannhaüser conseguiu, alegadamente, encontrar Venusberg, porém o desfecho desta descoberta não foi o melhor.

Enquanto na lenda original o papa se recusa a absolver Tannhaüser dos seus pecados, fazendo com que ele volte a Venusberg, na ópera de Wagner a resolução é muito mais longa… e complicada.

Portanto, na ópera de Wagner, depois de Tannhaüser se desentender com os cavaleiros e fugir, este encontra a dita cuja Venusberg, e com ela Vénus, que lhe oferece o seu charme de deusa do Amor, atraindo-o pela sua beleza.

Depois de satisfeito com o seu envolvimento com a deusa, Tannhaüser demonstra vontade de partir – Vénus manifesta-se interessada em mantê-lo em Venusberg, mas o cavaleiro insiste que quer voltar a casa. Ultrajada com tal desejo, Vénus e Venusberg desaparecem ao ouvirmos Tannhaüser declarar que a sua salvação reside na Virgem Maria.

Tannhaüser e Vénus, Otto Knille

O cavaleiro agradece a Deus por encontrar saída de Venusberg e volta ao castelo do Landgrave, onde encontra todos os seus colegas, que lhe fazem perguntas e querem que

Tannhaüser se junte a eles – algo que ele repetidamente recusa até ouvir Wolfram, um dos cavaleiros, mencionar o nome de Elisabeth, sobrinha do Landgrave.

É aí que lhe é explicado pelos colegas que Elisabeth, na verdade, o achava encantador, e tinha-se isolado e perdido o interesse na música depois da partida de Tannhaüser. Este, visivelmente comovido, implora-lhes que o levem a ela, e os dois reúnem-se alegremente.

Portanto, tudo estava bem, até que não estava bem de todo (o que é mais ou menos um resumo das óperas de Wagner) – num concurso de canções a que Elisabeth presidia, a participação de Tannhaüser dá para o torto quando este canta uma canção sobre Vénus, revelando, assim, a sua estadia em Venusberg. Querem logo condená-lo à morte, no entanto é Elisabeth que o salva, defendo que Deus quereria que ele procurasse a sua própria salvação.

O cavaleiro parte, então, com outros peregrinos para Roma, em busca de redenção, e deixa Elisabeth temendo o pior, o que se confirma ao ver os outros peregrinos a chegar, porém não ele.

Quando Tannhaüser chega ao castelo, o horror de Wolfram é evidente – ainda mais quando o cavaleiro lhe conta que não foi absolvido pelo Papa, mas sim amaldiçoado. Mas, mais do que isso, devido a esta decisão, ele pretende agora voltar a Venusberg.

Wolfram, aterrorizado ao ver a figura de Vénus aparecer diante dos seus olhos, profere a única palavra que poderia causar algum impacto em Tannhaüser: Elisabeth.

Como que parado no tempo, Tannhaüser repete o nome – e é nesse preciso momento que nos é anunciado que Elisabeth morreu, concedendo, assim, redenção a Tannhaüser.

No entanto, o cavaleiro nem chega a usufruir muito dela terrenamente: Wolfram pede que pousem o corpo de Elisabeth, e Tannhaüser morre debruçado sobre ele (uma coisa que se esperaria que Wagner escrevesse, não é mesmo?).

Mas isto tudo para se concluir que, de facto, este tipo de inspiração não significa que todas as personagens tenham a ver com a mitologia grega – e nem todas as histórias têm a ver com o tempo dos gregos em si.

Então, é depois desta história com personagens humanas que passamos a outra história em que são os humanos a ser defendidos – uma história que inspirou compositores bastante fora da caixa, como Liszt, Scriabin, Bartók e até Nono: a história do astucioso e determinado Prometeu.

Prometeu Trazendo o Fogo para a Humanidade, Friedrich Heinrich Füger

Tido pelos gregos como o responsável pela criação da Humanidade, Prometeu tinha uma grande afeição pelos seres humanos, achando injusto que os deuses não os dotassem com atributos com que eles próprios se regozijavam – um destes era o fogo, que seria tão útil para a nossa pobre espécie, então bárbara e sem algum tipo de civilização.

É então que Prometeu se decide a ajudar-nos, e oferece o fogo aos humanos, permitindo-lhes aquecer-se, cozinhar a sua comida e viver em civilização, desenvolvendo-se muito em termos sociais e tecnológicos.

Ora, esta atitude não foi exatamente do agrado dos deuses do Olimpo – enfuriado pela desobediência de Prometeu, Zeus prendeu-o a uma rocha e o seu símbolo, a águia, viria todos os dias comer o fígado de Prometeu (que, naquela altura, se acreditava ser o “receptáculo” das emoções humanas), que crescia de novo durante a noite, tornando a tortura infinita.

Finalmente, Prometeu foi libertado por Héracles, e o seu mito ficou para sempre relembrado na tradição clássica ocidental – particularmente na Era Romântica, Prometeu era tido com a personificação do génio solitário, cujos esforços para melhorar a existência da nossa espécie resultaram em glória para nós, mas tragédia para ele.

E, por muito que eu adore Liszt, hoje, em vez de explorar a perspetiva romântica, gostava de explorar uma perspetiva alternativa (vinda de um compositor também ele bastante alternativo) – a perspetiva de Scriabin no seu poema de tom Prometheus.

Note-se, esta é uma obra bastante… singular. Mas não nos esqueçamos que Scriabin era, também, um compositor singular, ou não fosse ele que tentou caminhar sobre a água porque pensava que tinha capacidades divinas.

Basicamente, ele acreditava mesmo que era o Messias, e que tinha de completar a sua missão de mudar um mundo fragmentado a partir de música mística (como se já não bastasse o egocentrismo que lhe era inerente, o aniversário dele calhava no Natal, o que o fazia acreditar ainda mais na sua missão divina).

Então, Scriabin decidiu criar quatro obras que, em conjunto, mudariam a consciência humana (até tenho medo): são elas O Poema Divino (1905); O Poema do Êxtase (1908); Prometheus, O Poema de Fogo (1909-1910); e Mysterium, que não chegou a ser escrito devido à morte do compositor – supostamente, esta seria a obra que traria a verdadeira transformação, e Scriabin tinha até planeado a apresentação da obra na Índia, onde tudo estaria em branco, até os músicos, e utilizar-se-iam todas as formas de arte possíveis, incluindo o perfume, para que, durante a performance da peça, toda a Humanidade fosse elevada a um estado de consciência extática.

Mas não nos percamos muito nas ideias… originais de Scriabin – isto só para dizer que o que Scriabin via na lenda de Prometeu era precisamente esta consciência humana, uma energia criativa.

Assim, Scriabin usou a lenda de Prometeu para escrever uma peça que refletisse a evolução da nossa espécie, que, segundo a lenda, começou a ser civilizada depois de lhe ser concedido o fogo, a partir do qual se desenvolveu. O compositor pretendia retratar a busca do ser humano pela tal consciência, tentando, assim, seduzir os ouvintes a aceder à sua tão desejada transformação.

Mas, claro, não se fala desta peça sem abordar as ideias mirabolantes que Scriabin lá incorporou – já por muitas vezes falei aqui no blog sobre a bendita (e muito interessante) sinestesia de Scriabin (artigos com menções a esta sinestesia aqui e aqui), mas faltava falar sobre a obra em que a sinestesia de Scriabin é, realmente, incorporada pelo compositor (alerta spoiler: é este mesmo poema de tom sobre o qual estávamos a falar).

No seu “Poema de Fogo”, Scriabin pretendia não apenas uma sinfonia sonora, mas uma sinfonia de raios coloridos – para chegar a este fim, Scriabin criou um novo instrumento, a tastiera per luce (teclado colorido), que era capaz de projetar luz de diferentes cores por detrás da orquestra, conseguindo, assim, reproduzir visualmente aquilo que a orquestra pretendia transmitir em som (e parece-me agora que a minha missão de falar da sinestesia de Scriabin está finalmente completa).

Finda toda esta maluqueira, passemos agora a um dos mais famosos mitos na mitologia grega, que tem ainda a ver com a história de Prometeu – a caixa de Pandora.

Pandora, Charles Edward Perugini

Esta inspirou vários compositores, mais notavelmente Massenet, que escreveu a ópera Pandora inspirando-se nesta lenda (eu sei, lá estou eu com as óperas outra vez… mas há muito mais do que isso inspirado neste mito! Peças para bandas sinfónicas, ensembles de sopros, ensembles de música de câmara, orquestra e narrador… o céu é o limite!) – e serviu como uma espécie de “solução” para a situação causada por Prometeu ao entregar o fogo aos humanos.

Pandora foi, de facto, criada precisamente para criar o desastre – foi-lhe atribuído um poder por cada um dos deuses (daí o seu nome, grego para “todos os dons”), Atena dando-lhe inteligência, Afrodite beleza, Apollo a música, e, finalmente, Hermes a capacidade de enganar.

E bem que engaram o irmão de Prometeu – Epimeteu esqueceu-se do aviso do irmão e tornou Pandora sua esposa, sem saber aquilo que o esperava.

O problema era que, para além de todos os dons concedidos pelos deuses, também Zeus lhe tinha dado uma prenda – aliás, uma prenda de casamento depois da sua união com Epimeteu -, na esperança de que ela quebrasse aquilo que foi feito por Prometeu: este era uma caixa (originalmente um jarro, mas alguém se descuidou na tradução do grego e acabou por ficar conhecido como caixa) que ela não poderia abrir seja em que circunstância fosse.

Mas, claro, Zeus sabia que, mais cedo ou mais tarde, havia uma fraqueza (ou melhor… um calcanhar de Aquiles) de Pandora que haveria de levar a melhor: a sua curiosidade.

Curiosa, Pandora acaba, então, por abrir a caixa, soltando para a civilização a pobreza, a fome, a inveja, entre outros. A última coisa que ficou dentro da caixa quando Pandora a fechou foi a esperança.

E foi este o mito que virou um dos mais famosos na mitologia grega – ainda para mais, um mito que já teve imensas interpretações não só a nível filosófico, mas em todos os ramos da Arte.

E é assim que chegamos ao último mito de hoje, diretamente relacionado com um dos deuses que conferiu a Pandora os seus poderes, Apollo – esta história, em narrativa, é bastante simples, mas veio a inspirar os mais variados compositores, incluindo nomes bem célebres, como Mozart ou Gluck.

Falo, portanto, da lenda de Apollo e Hiacinto: ao ver-se apaixonado por Hiacinto, Apollo abdica do seu lugar no Olimpo e da sua música para conviver com o mortal de Esparta, com quem se diverte imenso e leva uma vida deleitosa.

Mas tudo isto foi sol de pouca dura (como sempre nestas histórias trágicas… para ser sincera, a maior parte destas coisas já nem me choca) – há muitas versões sobre como é que isto aconteceu, mas o que é certo é que Hiacinto acabou por levar com uma espécie de disco enquanto estava com Apollo e morreu.

Devastado, Apollo prometeu nunca o esquecer, criando um festival em sua honra, e fazendo crescer uma nova espécie de flor à qual deu o seu nome – segundo a lenda, as suas próprias lágrimas criaram deformações nas pétalas.

Portanto, não é uma história tão complicada como isso (para além de ser um bocado distorcida nalguns casos), mas veio a servir de influência a várias obras – algumas delas seriam, por exemplo, a ópera de Mozart Apollo e Hyacinthus (que ele compôs com onze anos de idade… mesmo à prodígio), o balé Hyacinthus e Rose, de Christoph Willibald Gluck, o trabalho orquestral “Apollo e Hyacinthus”, de Benjamin Britten, entre outros.

E é com este mito que terminamos a nossa pequena viagem por entre o vasto império da mitologia grega, que veio a servir para tantas maravilhosas peças que conhecemos hoje – quer na Música, quer em tantos outros ramos da Arte.

E, antes de terminar com a citação habitual, vale a pena concluir dizendo que esta temática é mesmo vastíssima – acho que é seguro dizer que poderia fazer uma tese de doutoramento só a falar de obras inspiradas pela mitologia grega, e com certeza que faltaram algumas lendas importantes. Mas acho que o principal aspeto a reter será o quão magníficas e inventivas são estas histórias que moldaram uma civilização inteira, e uma bem avançada e frutuosa civilização.

Não admira que tenham sido tão utilizadas, e, mais do que tudo, tão bem preservadas ao longo dos tempos.

“Uma coisa boa, no entanto, estava lá – Esperança. Era a única coisa boa que a caixa continha entre os muitos males, e permanece até hoje o único consolo da humanidade no infortúnio.”

Edith Hamilton
Historiadora

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