Num artigo que publiquei há algum tempo atrás, falei de Bartók e a sua relação com a Etnomusicologia, dado que ele fez muita pesquisa de caráter científico que ajudou na criação deste ramo da Ciência.

Mas vários foram os compositores que homenagearam a música tradicional do seu país pela incorporação das suas características nas suas obras – Edvard Grieg com a sua coletânea de Danças e Temas do Folclore Norueguês, Pablo de Sarasate com, por exemplo, Navarra e Zapateado, Franz Liszt com as suas Rapsódias Húngaras, e imensos outros exemplos relacionados com folclore espanhol, como Manuel de Falla, Enrique Granados e Isaac Albéniz.

Outro exemplo que eu acho particularmente interessante é Astor Piazzolla – e não só com esta obra: temos também Libertango, Tango Suite, Las Cuatro Estaciones Porteñas, Oblivion, Adiós Nonino… digamos apenas que Piazzolla adorava tango.

Este estilo teve as suas origens na área de Rio da Prata, na América do Sul, nas cidades de Buenos Aires e Montevideu. Segundo o compositor Enrique Santos Discépolo, “o tango é um pensamento triste que se pode dançar”.

Mistura o drama, a paixão, a sensualidade, a agressividade, e é sempre totalmente triste. Como dança, é “duro”, masculino, sem meneios femininos, a mulher é sempre submissa. O ritmo é sincopado e tem um compasso binário.

A síncopa é de uma nota tocada no tempo fraco que se prolonga até a um tempo forte, o que movimenta a música e desloca a acentuação do ritmo.

Diz-se que descende da habanera, original de Havana, em Cuba, que foi usada por várias vezes em música erudita, sendo um dos exemplos mais famosos o da Habanera de Bizet, da ópera Carmen.

Ora Astor nasceu, exatamente, na Argentina, em 1921, no entanto quando tinha 4 anos mudou-se para Nova York à procura de melhores condições de vida. Ganharia o seu primeiro bandoneón (instrumento principal da orquestra do tango) do seu pai em 1929, e viria a tornar-se músico profissional neste instrumento.

Agora entra por aqui uma parte interessante: ele teve aulas com a exímia professora de música Nadia Boulanger, conhecida pelos seus importantes alunos como Aaron Copland, Philip Glass e Daniel Barenboim, entre outros, a Boulangerie. Esta professora era conhecida por ser muito exigente, mas também por incentivar os seus alunos a descobrir a sua própria voz. Aliás, ela recusou dar aulas a George Gershwin porque achou que ele já tinha encontrado a sua voz.

Foi ela que incentivou Piazzolla a escrever música de tango com a matéria que aprendera com ela.

Uma das suas obras, que irá ser o tema do artigo de hoje, é a sua “L’Histoire du Tango”, em que ele nos explica toda a história do tango numa suíte de quatro movimentos.

Foi escrito originalmente para flauta e guitarra, no entanto hoje é tocada com várias combinações alternativas: a flauta substituída pelo violino e a guitarra substituída pela marimba ou pela harpa.

E estes quatro movimentos são: Bordel 1900, Café 1930, Nightclub 1960, e Concert d’Aujourd’hui.

Bordel 1900

“O tango surgiu em Buenos Aires em 1882. Foi tocado pela primeira vez na guitarra e na flauta. Os arranjos passaram então a incluir o piano e, mais tarde, a concertina. Esta música é cheia de graça e vivacidade. Ela retrata a conversa bem-humorada das mulheres francesas, italianas e espanholas que povoavam aqueles bordéis enquanto provocavam os polícias, ladrões, marinheiros e ralé que vinham vê-las. Este é um tango animado.”

– Notas de programa para Bordel 1900 por Astor Piazzolla

Na Argentina, o tango tornou-se sinónimo de paixão, melancolia e tristeza, conforme sentencia a famosa expressão referida anteriormente “o tango é um pensamento triste que se pode dançar”. No entanto, ao contrário do que pensamos, o tango não “nasceu” triste e argentino.

Ao longo do século XIX, a jovem nação argentina incentivou a entrada de imigrantes europeus no país para que os mesmos pudessem ampliar a mão-de-obra disponível e, conforme relatos da época, “refinar” a cultura pelo contato com espanhóis, franceses, poloneses e italianos. Assim, uma grande quantidade de população mudava-se para a Argentina vinda de outros países.

Tínhamos assim uma variadíssima quantidade de culturas musicais a fundir-se neste género. A polca europeia, a habanera cubana, o candombe uruguaio e a milonga espanhola foram alguns dos géneros que modelaram o nascimento do tango argentino.

Nos seus primeiros anos, o tango era formado por um trio musical executante de ritmos mais acelerados e os passos de dança tinham muita sensualidade. Devido a esta situação, durante algum tempo, o tango era considerado imoral. As pessoas de “boa índole” possuíam uma verdadeira aversão à prática deste tipo de música e dança. No entanto, os imigrantes que voltavam da Argentina para a Europa tinham popularizado o estilo, principalmente na cidade de Paris. Devido a esta popularização por parte dos imigrantes, os ataques de aversão contra o tango perderam força.

Começando com uma alegre introdução em lá maior, esta peça maioritariamente animada varia entre secções mais ritmadas e mais calmas, e este retrato permanece muito diferente do tango a que agora estamos habituados a ouvir. Fazendo uso da guitarra não só como cordas dedilhadas mas também como percussão nalgumas passagens, esta pequena peça é realmente bastante leve e feliz, como descrito nas notas de programa.

Flauta e guitarra:

Violino e guitarra:

Piano:

Café 1930

“Esta é outra era do tango. As pessoas pararam de dançar como faziam em 1900, preferindo simplesmente ouvi-la. Tornou-se mais musical e mais romântico. Este tango sofreu uma transformação total: os movimentos são mais lentos, com novas e muitas vezes melancólicas harmonias. As orquestras de tango consistem em dois violinos, duas concertinas, um piano e um baixo. O tango às vezes é cantado também.”

– Notas de programa para Café 1930 por Astor Piazzolla

Em 1917 começaram a surgir variantes formais do Tango. Uma delas, influenciada pela romança francesa, deu origem ao chamado Tango-canção – tangos feitos para musicar uma letra. A letra passa a ser parte essencial do tango e consequentemente, surgem os cantores de tango.

Nos cabarés de luxo da década de 1920, o tango sofreu importantes modificações. Os executantes não eram mais os pequenos grupos que atuavam nos bordéis, mas músicos profissionais que trouxeram o uso do piano e mais qualidade técnica e melódica. É também por esta altura que aparece Carlos Gardel, uma das personagens mais importantes deste género.

Carlos Gardel já era um estrondoso sucesso em 1928. Sucesso que durou até 1935, quando faleceu vítima de um acidente de avião quando estava em pleno auge. Gardel cantava o tango em Paris, Nova York e muitas outras capitais do mundo, sempre atraindo multidões, principalmente quando se apresentava na América Latina. Também foi responsável pela popularização do tango pelos filmes musicais de tango produzidos em Hollywood.

No entanto, na Argentina, o início da Grande Depressão em 1929 e as restrições introduzidas após a derrubada do governo de Hipólito Yrigoyen em 1930 fizeram com que o tango declinasse.

Como visto nas notas de programa, é nesta altura que o tango ganha a sua vertente de “pensamento triste que se pode dançar”. No entanto, agora o interesse também está na música. De facto, Carlos Gardel era cantor, não dançarino.

Café 1930 é incomparavelmente mais melancólico do que Bordel 1900. Agora em tonalidade menor, mi menor, é muito mais romântico e intenso, com maior quantidade de passagens lentas e melancólicas.

Mais ou menos a partir do meio da peça, Piazzolla apresenta-nos ainda contrastes entre maior e menor, culminando em acordes cheios de melodia e caráter.

Com estas melodias tocadas no violino (na versão que estou a ouvir enquanto estou a escrever), denota-se o caráter cantabile, lírico e harmonioso associado a este instrumento, o que nos demonstra, na minha opinião, a função da voz neste estilo musical, e o papel que desempenha na transmissão deste tipo de atmosfera característico do Tango de 1920 ou 1930.

Acho curioso ainda a maneira como esta peça tem um ritmo algo diferente do que eu normalmente associo a tango, que se assemelha mais, na minha opinião, a outras peças de Piazzolla, como o seu Libertango.

Flauta e guitarra:

Violino e guitarra:

Piano:

Nightclub 1960

“Este é um momento de intercâmbio internacional em rápida expansão, e o tango evolui novamente à medida que Brasil e Argentina se reúnem em Buenos Aires. A bossa nova e o novo tango caminham para o mesmo ritmo. O público corre para os clubes noturnos para ouvir com seriedade o novo tango. Isto marca uma revolução e uma profunda alteração nalgumas das formas originais do tango.”

– Notas de programa para Nightclub 1960 por Astor Piazzolla

Maxixe é um tipo de tango que é o dito tango brasileiro. Este sub-estilo é originário da cidade brasileira do Rio de Janeiro em 1868, na mesma época em que o tango se desenvolvia nos países vizinhos Argentina e Uruguai. É uma dança desenvolvida a partir de danças afro-brasileiras (principalmente o lundu) e de danças europeias (principalmente a polca).

Como o tango, o maxixe viajou para a Europa e para os Estados Unidos nos primeiros anos do século XX.

Este período foi presenciado por Piazzolla, pois durante a década de 1950, Piazzolla conscientemente tentou criar uma forma mais académica com novos sons quebrando as formas clássicas de tango.

O tango declinou novamente no final da década de 1950, como resultado da depressão econômica e da proibição de reuniões públicas pelas ditaduras militares; a prática do tango apenas para homens – o costume na época – era considerada “reunião pública”. Isto, indiretamente, impulsionou a popularidade do rock and roll porque, ao contrário do tango, não exigia tais encontros.

Esta peça mantém o caráter melancólico e forte em caráter de Café 1930, começando com uma passagem ritmada que se transforma nalgo mais no estilo de Café. Deparamo-nos a seguir com uma melodia mais uma vez ritmada e cativante, que começa com efeitos percussivos no violino adicionados por Piazzolla. O compositor combina assim o ritmo sincopado e vistoso desta altura (mais parecido já com o Libertango que referi anteriormente) com a personagem melancólica surgida anteriormente, intercalando estes dois diferentes componentes de Nightclub 1960.

Flauta e guitarra:

Violino e guitarra:

Piano:

Concert D’Aujourd’Hui

“Certos conceitos da música de tango se entrelaçam com a música moderna. Bartók, Stravinsky e outros compositores relembram o som da música do tango. Este é o tango de hoje, e o tango do futuro também.”

– Notas de programa para Concert D’Aujourd’Hui por Astor Piazzolla

A paixão de Piazzolla pelo tango e pela música clássica e a sua visão em compor tangos que pudessem ser apresentados em salas de concerto em todo o mundo o inspiraram a criar novos estilos de tango que misturavam elementos de jazz e música clássica. Na L’Histoire du Tango, Piazzolla não só nos apresentou os vários estilos de Tango em diferentes momentos do século XX, mas também revolucionou o tango tradicional num novo estilo chamado Nuevo Tango.

Gustavo Naveira descreveu este estilo da seguinte forma:

“Há uma grande confusão sobre a forma de dançar o tango: chame-se de técnica, forma ou estilo. O termo tango nuevo é usado para se referir a um estilo de dança, o que é um erro. Na realidade, Tango Nuevo é tudo o que aconteceu com o tango desde os anos 1980. Não é uma questão de estilo… As palavras Tango Nuevo não são um termo específico nem um título (exceto no caso de uma obra musical de Astor Piazzolla). Com isto em mente, estas palavras expressam diretamente, por meio do seu significado literal, o que está a acontecer com a dança do tango em geral; ou seja, que está evoluindo. Tango Nuevo não é mais um estilo; é simplesmente que a dança do tango está a crescer, a melhorar, a desenvolver-se, a enriquecer-se, e neste sentido estamos a caminhar para uma nova dimensão na dança do tango… Tem havido muita discussão recentemente, na comunidade de dançarinos de tango, sobre o problema do abraço, dividindo a dança em estilo aberto ou fechado, o que também é motivo de grande confusão. Abraço aberto ou abraço fechado, dançando com o espaço ou dançando perto, são todos termos ultrapassados. Esta é uma forma antiga de pensar, resultante da falta de conhecimento técnico em épocas passadas. Esta divisão simples e desajeitada entre aberto e fechado é frequentemente utilizada por aqueles que tentam negar a evolução da dança, para disfarçar a sua própria falta de conhecimento. Hoje está perfeitamente claro que as distâncias na dança têm uma complexidade muito maior do que um simples aberto ou fechado… Aprendemos e desenvolvemos os nossos conhecimentos. O resultado disso é uma dança de maiores possibilidades, e também de uma qualidade muito mais artística.”

Concert d’Aujourd’hui é uma grande conquista desta fusão de vários tipos de música, um novo tango que incorpora harmonia cromática, deslocamento de acentos, melodias um tanto excêntricas e menos tonais e também elementos de improvisação jazzísticos, que se distinguem claramente dos outros três tangos na História.

Começando logo com estas harmonias cromáticas e acordes excêntricos, a peça segue ritmada e cheia de caráter. Nos breves momentos em que começa a descender para algo mais como Café, é sempre breve e ritmado. O tema inicial repete-se e dá lugar ao ritmo característico do tango, nesta passagem acompanhado por acordes marcantes da guitarra para além do acompanhamento habitual até ao fim da peça, que termina como começou: sincopada e cheia de caráter.

Flauta e guitarra:

Violino e guitarra:

Piano:

Stravinsky compôs uma peça chamada “Tango”, mas isso não é nem de perto nem de longe tudo o que aconteceu.

A chamada geração pós-Piazzolla (1980–) inclui músicos como Dino Saluzzi, Rodolfo Mederos, Gustavo Beytelmann e Juan José Mosalini.

No final da década de 1990, o compositor e pianista Fernando Otero continuou a agregar elementos ao processo de inovação iniciado décadas atrás, ampliando a orquestração e a forma, ao mesmo tempo em que inclui aspectos de improvisação e atonal em seu trabalho.

Na segunda metade da década de 1990, nasceu em Buenos Aires um novo movimento de compositores e orquestras de tango tocando novas canções. Foi influenciado principalmente pelo antigo estilo de orquestra e não pela renovação e experimentos de Piazzolla com música eletrônica.

Nas duas primeiras décadas do século XXI, o movimento cresceu com a criação de inúmeras bandas tocando novos tangos.

O desenvolvimento do tango não parou com o tango nuevo. O tango do século XXI é conhecido como neotango. Essas tendências recentes podem ser descritas como “eletro tango” ou “tango fusion”, onde as influências eletrônicas variam de sutis a dominantes.

A música ainda tem o seu sentimento de tango, o complexo emaranhado rítmico e melodioso que torna o tango tão único.

Um exemplo é Gotan Project, um grupo formado em 1999 em Paris, formado pelos músicos Philippe Cohen Solal, Eduardo Makaroff e Christoph H. Muller. Os seus lançamentos incluem Vuelvo al Sur/El capitalismo foráneo (2000), La Revancha del Tango (2001), Inspiración Espiración (2004) e Lunático (2006). O seu som apresenta elementos eletrónicos como samples, batidas e sons por cima de um groove de tango. Alguns dançarinos gostam de dançar com esta música, embora muitos dançarinos tradicionais a considerem uma ruptura definitiva no estilo e na tradição.

Outros exemplos são Bajofondo Tango Club e Electrocutango.

Por último mas não menos importante, o tango foi integrado pela UNESCO na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade em 2009, sendo associado aos estados-membros Argentina e Uruguai.

E o tango continua a ser um importante estilo de dança, um pouco à volta de todo o Mundo, e o trabalho de Piazzolla apreciado também pelos aficionados deste género de dança!

“Eu tive a feliz ideia, para mim, é claro, de mudar o tango. Desde 1940 até hoje, eu tive os mais tremendos problemas da minha vida por uma única causa, por querer mudar, por querer evoluir.”

Astor Piazzolla
Bandoneonista e Compositor Argentino